Em um território de 40 hectares, uma uva de casca sensível e rica em polpa tem mudado o cenário da vitivinicultura sul-catarinense. Depois de quase desaparecer no período onde a pujança econômica advinha do carvão e da cerâmica, a uva Goethe foi resgatada junto ao desejo de manter vivas as tradições trazidas pelos imigrantes italianos.
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Única Indicação de Procedência do setor vitivinicultura fora do Rio Grande do Sul, os Vales da Uva Goethe produzem vinhos, frisantes e espumantes únicos que têm conquistado cada vez mais espaço.
A fruta, que recebeu esse nome em homenagem ao escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, foi originada a partir do cruzamento de viníferas (87%) com videiras norte-americanas (13%). O experimento foi realizado por Edward Stanniford Roger, nos Estados Unidos, em 1858. Com genes de variedades Vitis Vinifera em quantidade expressiva, esse cultivares (espécies de plantas que foram melhoradas devido à alteração ou introdução, pelo homem, de uma característica que antes não possuíam) produz vinhos leves e refrescantes.
— Eu sempre brinco que Urussanga é o maior produtor de Goethe do mundo. Só se planta aqui. É bem legal, pois é um vinho que reflete toda tradição de uma região, um vinho que foi produzido durante todo o século XX. A questão de indicação geográfica, o movimento Slow Food, é uma fortaleza para preservar aquela uva — explica um dos diretores da Associação Brasileira de Sommelier (ABS) de Santa Catarina, Wilton Cordeiro.
Onde as uvas Goethe nascem
Os Vales da Uva Goethe ficam no Sul do Estado, entre o litoral e a encosta da Serra. Urussanga, Pedras Grandes, Cocal do Sul, Morro da Fumaça, Treze de Maio e Orleans estão dentro dos Vales; e Içara e Nova Veneza, cidades vizinhas, também têm produção. Com pelo menos oito tipos diferentes de solo e altitudes que variam de 50 a 600 metros acima do nível do mar, cada produtor tem como resultado um vinho com identidade própria.
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Dentro do forte apelo regional, 80% da produção de Goethe ainda circula em território catarinense. É encontrada nas próprias vinícolas, pela internet e em menor escala nas prateleiras de redes de supermercados. Os rótulos ainda carecem de força para entrar nas cartas dos restaurantes de grandes cidades, e por isso os produtores têm trabalhado para quebrar algumas barreiras.
— A gente se coloca como raro, típico e único. Na Wine South America, em setembro, nós fomos tidos como os “diferentões” da feira. Diferentes mas de alta qualidade, algo novo no mundo do vinho. Essa feira foi um ponto para gente, um termômetro do que nós estamos produzindo e como isso é recebido no mercado — comenta Matheus Damian, diretor da Casa Del Nonno, de Urussanga.
Essa foi a primeira participação da Associação dos Produtores da Uva e do Vinho Goethe (ProGoethe) em encontros específicos. A entidade reúne a cadeia produtiva e partiu dela a iniciativa de buscar a Indicação de Procedência. Com o trabalho constante dessas vinícolas, as bebidas começam a ganhar visibilidade, defende a secretária da Associação, Patrícia Mazon:
— A evolução é lenta, mas sólida. Passa da conscientização dos produtores, de sensibilizar pelo uso do selo de procedência, dessa união em prol de um diferencial, e do consumidor agora com as redes sociais, que tem nos conhecido.
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Enogastronomia e turismo de experiência
Apesar da produção de vinho Goethe na região ter mais de um século, o destino ainda não é consolidado como uma rota do enoturismo. Este ano, no Congresso Latino-Americano que discutiu o tema em Bento Gonçalves (RS), o vice-presidente do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), Marcio Ferrari, disse que cerca de 30% das vinícolas do país já possuem atrativos turísticos. Dessas, 90% são micro e pequenas empresas, onde 40% da receita vem da venda direta aos turistas.
Por aqui, a ProGoethe ainda se organiza para estimar números, mas a largada para estimular o enoturismo foi dada. Há sete anos, a Vinícola Mazon iniciou o trabalho de recepção e hospedagem, dando origem à Vigna Mazon, em Urussanga. Nos últimos dois anos, o incremento foi de 30% nos negócios, segundo a sócia proprietária Patrícia Mazon.
Outra opção para quem visita os Vales da Uva Goethe é o terraço inspirado na Toscana, recém- inaugurado na Casa Del Nonno. Com vista para um pequeno parreiral, o local deve se tornar em breve ponto de encontro para os amantes do vinho. Em Azambuja, interior de Pedras Grandes, a Pousada da Imigração é garantia de comida típica italiana e sossego em meio aos parreirais.
— É uma tradição muito legal dos imigrantes italianos com a uva. Quem procurar esse destino vai encontrar um vinho sem compromisso, ele não vai te trazer na degustação uma complexidade, mas é bastante aromático até pela origem dessa uva que é híbrida. O fim dela traz essa riqueza de aromas frutados e florais, é um vinho jovem, que tem acidez mediana — explica um dos diretores da Associação Brasileira de Sommelier (ABS) de Santa Catarina, Wilton Cordeiro.
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Primeiro espumante Goethe do mundo
O empenho dos produtores de vinho em melhorar a qualidade da bebida fez surgir novas possibilidades de negócio. Foi preciso que a ideia batesse três vezes à porta para que Renato Damian, da Casa Del Nonno, a deixasse entrar. Em 2004, ele decidiu acrescentar gás carbônico àquele vinho branco leve e aromático, dando origem ao primeiro espumante Goethe do mundo.
A vinícola produz 100 mil garrafas ao ano, 40 mil de vinho tinto e 60 mil de branco, sendo 20 mil de espumante com uva Goethe. A venda da bebida borbulhante tem crescido a cada ano, impulsionada por mudanças no hábito de consumo. Das unidades mais exclusivas produzidas no método champenoise*, até a escala industrial do processo charmat*, não faltam motivos empresário para celebrar.
– Está sendo bem aceito por ser um produto diferenciado e agradável, e as vendas estão em uma crescente visto que hoje espumante se toma em qualquer momento. Uma vez era somente final de ano, hoje não, em qualquer comemoração é normal abrir uma garrafa – comemora Renato.
*Charmat e Champanoise: O processo de fermentação do espumante, que pode ser no método champanoise ou charmat, é o responsável pela perlage, que são as bolhas existentes na bebida. No charmat, utilizado em escala industrial, a segunda fermentação da bebida que é onde acontece a formação do álcool e do gás carbônico, é feita em tanques. No champanoise, também conhecido como método clássico, as leveduras trabalham dentro da garrafa, que é girada constantemente durante todo o processo de fermentação.
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Dos EUA para SC
As primeiras videiras de uva Goethe foram importadas dos Estados Unidos para o Brasil no final do século XIX. Benedito Marengo, imigrante italiano, era quem cuidava dos parreirais do fazendeiro Luiz Pereira Barreto, em São Paulo.
Quase mil quilômetros distante, chegou em Urussanga no começo do século XX o regente do consulado italiano Giuseppe Caruso MacDonald. Em uma de suas viagens até o centro do país, ele conheceu a uva Goethe e a introduziu em território catarinense.
O cultivar se adaptou bem ao clima da região e logo surgiram as primeiras frutas. O vinho produzido agradou o paladar. A partir daí, os colonos ampliaram o consumo e logo surgiram as primeiras vinícolas, com produção em maior escala de diferentes vinhos. Fundada em 1913, a vitivinícola Caruso MacDonald tinha capacidade para 2,2 milhões de litros por ano e foi a primeira da cidade. Os 68 barris de tijolo maciço, com quase 4 metros de altura cada, continuam de pé e se tornaram ponto turístico em Urussanga.
Dentro do boom do vinho local, em 1942, no governo de Getúlio Vargas, foi construída em Urussanga uma das unidades do Instituto de Fermentação, onde eram realizadas pesquisas com espécies de uvas viníferas.
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Em recepções no Palácio do Catete e no Copacabana Palace, o presidente costumava brindar com o vinho catarinense, conta o autor do livro “Do parreiral à taça: o vinho através da história”, Sérgio Maestrelli.
Apesar do apreço pela bebida produzida pelos imigrantes italianos, decisões políticas do então presidente também ajudaram a enfraquecer esse grupo. Com a Campanha de Nacionalização durante o Estado Novo, de 1937 a 1945, e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) em que Itália e Alemanha foram adversários do Brasil, as comunidades de imigrantes sofreram forte pressão para deixar de lado a língua mãe, além de minimizar costumes e tradições, para se tornarem mais abrasileiradas.
– A comunidade alemã sentiu isso bem mais fundo, mas acabou respingando aqui sim, entre os imigrantes italianos. O que se tinha de documentação foi perdido, não se podia falar a língua estrangeira, livros, jornais, tudo foi queimado, um ou outro mais aguerrido que escondeu alguma coisa – explica o autor.
Outro fator que também colaborou para a queda na produção de vinhos foi a oferta de novas fontes de renda. A região prosperava com a abundância de carvão mineral, e a alta remuneração aliada à aposentadoria precoce atraíram mão de obra, entre elas do pequeno agricultor. O setor cerâmico também crescia na região, e duas novas indústrias instaladas em Urussanga em 1950 surgiram como alternativa de emprego.
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– A força na economia eram as cantinas. Por causa da Segunda Guerra, o carvão se tornou um produto de segurança nacional, produção de energia, e virou prioridade total. A maioria da mão de obra veio do meio rural, a aposentadoria era com 15 anos de serviço, então começou o abandono dos parreirais – comenta o historiador, que também é engenheiro agrônomo da Epagri.
Vinícolas fecharam, mas as poucas que mantiveram as videiras produtivas ajudaram a reescrever essa história. A família Trevisol, hoje na quarta geração, foi uma delas. Os primeiros passos dados por Hedi Damian e Flávio Antonio Mariot, em 1975, trilharam um caminho que se mantém vivo na Casa Del Nono. No setor de enoturismo, a precursora é a Vigna Mazon, que agregou valor à história iniciada pelos irmãos Genésio e Jayme Mazon na década de 1970.