A família estava reunida no sítio em Apiúna. Era um domingo feliz, com filhos e netos juntos para celebrar os 43 anos de casamento de Aparício e Silda. Ele já estava abatido e não podia fazer várias atividades, mas aproveitava a festa em casa. Às 17h veio o susto. Aparício passou mal, foi para a cama, sentiu a dor e a fraqueza o dominar. Houve quem pensasse que o dia 11 de março se tornaria uma data triste para a família, mas às 20h veio uma ligação do médico: o fígado que ele esperava desde junho do ano passado para um transplante estava disponível. Naquele momento, Aparício Tula de Oliveira, aos 76 anos, foi ao encontro de uma vida nova.

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– O que a gente sentiu na hora em que ligaram não dá nem para explicar. É uma alegria enorme, você não sabe nem o que fazer. É maravilhoso – conta a esposa Silda Defrein, ao recordar o momento com os olhos marejados e um sorriso no rosto.

Aparício resumiu o momento em poucas palavras:

– Ganhei na maior loteria do mundo.

Às 20h30min daquele domingo, Aparício foi levado com urgência do sítio da família em Apiúna para Blumenau, onde faria o transplante do fígado no Hospital Santa Isabel. Saíram da região de Ribeirão Carvalho, às margens da BR-470, e vieram pela rodovia, mesma estrada que Aparício cruzou incontáveis vezes durante a carreira como caminhoneiro. Mesma rodovia que até as 12h de sexta-feira já havia registrado 35 mortes, das quais muitas se transformaram em vida com a doação de órgãos das vítimas. Entre eles, o novo fígado de Aparício.

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O anseio pelo órgão havia tirado o lado sorridente do homem feliz e trabalhador, que nasceu no Rio Grande do Sul e mudou-se para Campos Novos, onde se criou antes de se transferir para Blumenau e viver por 30 anos na Itoupava Central. Na virada do milênio, decidiu se aposentar da rotina de caminhoneiro e concretizar o sonho de morar em um sítio com a mulher. O casal comprou o terreno em Apiúna e se mudou para a casa com fogão à lenha, móveis rústicos, três lagoas com peixes, animais, árvores frutíferas e uma coleção de peças artesanais de madeira talhadas por Aparício para passar o tempo.

– A doença e a espera pelo transplante me tiraram o ânimo, me deixaram triste e fraco. Esse órgão foi a coisa mais especial que recebi na vida. Hoje sou a pessoa mais feliz do mundo e só quero me recuperar para voltar a aproveitar a vida. Por isso que passamos para toda a família a importância de doar os órgãos. É a maior graça que se pode dar – diz Aparício, ao mostrar os pontos da cirurgia.

A doação de órgãos só é possível em caso de morte encefálica (cerebral), e necessita de uma notificação rápida e precisa por parte da equipe médica. A maioria das mortes encefálicas, segundo dados do Centro Estadual de Transplantes de Santa Catarina (SC Transplantes), é causada por acidente vascular cerebral (AVC), e logo depois no ranking estão os traumatismos cranianos causados por acidentes de trânsito.

42 doações de órgãos por mortes no trânsito

No ano passado, em Santa Catarina foram 154 doações de órgãos depois de AVC e 42 por mortes no trânsito. Tratam-se de vítimas que são levadas aos hospitais com traumatismo e não sobrevivem, mas que não tiveram os órgãos danificados pelo impacto da colisão. Um dado que contrapõe os números da violência nas estradas que, no Vale do Itajaí, tem o trecho da BR-470 entre Navegantes e Pouso Redondo como o mais violento: houve 1.884 mortes desde 2000, segundo levantamento exclusivo do Santa.

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– Não se tem registrado exatamente as doações que vêm de acidentes em rodovias ou nas áreas urbanas, mas esse tipo de caso está em segundo na lista das doações no Estado. É algo que acontece com frequência, especialmente com motociclistas que vão com quadro de traumatismo craniano às unidades de emergência. A responsabilidade é do hospital de, quando há o quadro de morte encefálica, notificar imediatamente e fazer essa conversa com a família sobre a doação quando há a certeza absoluta do diagnóstico – explica Gisélia Theiss, coordenadora de enfermagem da Comissão Hospitalar de Transplantes do Hospital Santa Isabel, em Blumenau, que é referência em transplantes no Estado.

A importância da emergência no transporte de órgãos e pacientes

Além dos hospitais, para que a engrenagem complexa dos transplantes funcione é preciso um trabalho em conjunto com as equipes de emergência como Samu e Corpo de Bombeiros, que além do atendimento inicial de socorro, muitas vezes auxiliam no transporte de pacientes e órgãos.

– A prioridade do Corpo de Bombeiros é salvar vidas, mas o trabalho das unidades aéreas que temos em Santa Catarina desde 2010 tem feito a diferença na rede de transplantes. Às vezes uma vida pode salvar muitas vidas – destaca o coronel Edupércio Pratts, chefe do Estado Maior-Geral do Corpo de Bombeiros Militares de Santa Catarina e piloto dos helicópteros Arcanjo.

Nos hospitais para onde as vítimas dos acidentes de trânsito são levadas, o principal trabalho é de orientação para um protocolo da SC Transplantes sobre o diagnóstico das mortes encefálicas que podem gerar doações. Segundo a coordenadora do setor no Hospital Santa Isabel, Gisélia Theiss, há um trabalho intenso para que não exista subnotificação e também no acolhimento das famílias, para que todo o processo seja claro e somente quando há a certeza de morte cerebral.

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– O alerta hospitalar é muito importante. O que fazemos é treinar pessoas das áreas críticas nos hospitais para que nenhuma morte encefálica deixe de ser notificada – explica o coordenador da SC Transplantes, Joel de Andrade.

Operação contra o tempo para conseguir o novo coração

Por mais organizado que seja o sistema de transplantes em Santa Catarina e os rígidos protocolos, algumas histórias parecem saídas do cinema e demonstram a importância de todas as peças da engrenagem. Portadora da síndrome de Wolff-Parkinson-White (quando há uma via elétrica extra no coração que causa um batimento acelerado) e com um coração hipertrofiado, Isabeli Vieira Lourenço havia deixado passar quatro corações na fila de espera pelo órgão desde outubro de 2017. Os possíveis corações haviam surgido em cidades distantes que impossibilitaram a logística complexa que o envolve o transplante, que precisa ser feito em quatro horas.

No dia 14 de março, a situação parecia se repetir. Um quinto coração compatível com Isabeli teria de ser recusado por conta das distâncias. A jovem de 27 anos estava em casa, em Jaraguá do Sul, o médico responsável pela cirurgia estava em Florianópolis e o doador do coração havia acabado de falecer no Hospital Santa Isabel, em Blumenau. Eram 16h de uma quarta-feira e o relógio estava contra o transplante. O Corpo de Bombeiros foi acionado e uma operação impecável permitiu que Isabeli recebesse um novo órgão para bater no peito.

Um avião do Corpo de Bombeiros buscou o cirurgião Frederico di Giovanni em Florianópolis e o helicóptero Arcanjo 03 saiu de Blumenau para buscar a paciente em Jaraguá do Sul. Ao deixá-la rapidamente no Hospital Santa Isabel, partiu para o Aeroporto Quero-Quero encontrar com o avião que trazia o médico da Capital e levá-lo ao hospital. Às 19h30min, Isabeli entrava no centro cirúrgico para começar a operação, que acabou às 4h do dia seguinte.

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– Quando eu soube que havia o coração compatível senti uma euforia, estava tremendo, sem acreditar e ao mesmo tempo sentindo alegria. Acho que só agora a ficha está caindo. Aprendi a fazer todas as coisas mais devagar com um coração que funcionava sem toda a sua capacidade. Agora ganhei uma bateria nova e estou reaprendendo a viver. Parece que renasci e estou fazendo tudo pela primeira vez – conta a jovem fisioterapeuta e professora de ioga, que há oito anos vivia com problemas no coração.

Atleta desde criança, Isabeli cresceu pedalando, nadando, surfando e até velejando. Com um coração que nos últimos meses batia em um quarto do que deveria, a jovem relutou em se entregar. No Natal de 2015, com um desfibrilador implantado no coração, chegou a surfar e assustou toda a família. Foi em parques, fez um voo duplo no Litoral e velejou no começo de 2017. “Mesmo com um coração fraco a gente dá um jeito”, dizia. Na metade do ano passado a situação piorou e a fila do transplante virou realidade.

Duas semanas depois do transplante, Isabeli saiu da UTI e se recupera no quarto do hospital em Blumenau, onde deve ficar por pelo menos mais três semanas. De lá, vai reaprendendo a viver com um coração que bate em sintonia e conta a história dela aos seguidores da página “Coração a bordo”, criada ano passado no Facebook. O próximo desejo?

– Quero ir para o mar, velejar, surfar, mergulhar. Quando a gente passa por uma situação dessas, começamos a descobrir o porquê de as coisas. A vida é linda.

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