“Minha contribuição vai muito além de apenas transmitir informação, mas sim a emoção”. É assim que Wesley Henrique Malta, de 32 anos, que é tradutor e intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras), descreve o trabalho que faz de intérprete em shows e festivais de música. No Dia Mundial da Língua de Sinais, 23 de setembro, Wesley chama a atenção para a necessidade de inclusão desses profissionais e da comunidade surda em programações culturais.

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O Dia Mundial da Língua de Sinais foi celebrado, pela primeira vez, em 2018. A data busca homenagear o dia em que a Federação Mundial dos Surdos foi criada, em 1951.

No Brasil, há mais de duas décadas, a Língua Brasileira de Sinais é oficializada pela Lei 10.436/2002, sendo uma das principais formas de comunicação para a comunidade surda no Brasil.

— É uma data que traz visibilidade para um tipo de língua que é desconhecida por muitas pessoas. Quando a gente está falando de línguas, a gente tem as línguas vocais auditivas, como o português, o inglês, o espanhol, que são línguas produzidas pela voz e percebidas pela audição, como a maioria das línguas que a gente conhece. Mas existe um outro tipo de língua, que são as línguas de sinais, produzidas com o corpo, com o rosto e com as mãos e percebidas através de outro canal, que não é o auditivo, é a visão — explica Hanna Beer, que é intérprete de Libras-português.

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A profissional desmente, ainda, a crença de que a língua de sinais é resumida em gestos, mímicas ou um suporte preso à Língua Portuguesa.

— Ela é uma língua totalmente independente, e que, assim como as línguas indígenas, por exemplo, são línguas minoritárias no Brasil — continua.

A intérprete, moradora de Florianópolis, está trabalhando nas campanhas eleitorais das eleições municipais deste ano na tradução de propagandas políticas televisionadas. Sobre o dia que traz visibilidade para a língua de sinais, ela destaca que é muito importante para a quebra de estereótipos e falsas percepções em relação ao meio de comunicação de pessoas surdas.

Nessa semana, também é celebrado o Dia do Surdo, que foi oficializado em 2008, por meio do decreto de Lei nº 11.796. O dia é relacionado à fundação da primeira escola para surdos na época de D. Pedro II, o antigo Instituto Imperial para Surdos-Mudos, que foi em 26 de setembro de 1857. Recentemente, o instituto mudou o nome para Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), e fica no Rio de Janeiro.

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Inclusão a ambientes inacessíveis

Marianne Stumpf, professora do curso de Letras Libras e de pós-graduação em Linguística na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) é surda, e afirma que os intérpretes de shows garantem que a comunidade surda possa participar de eventos culturais e de entretenimento, com a inclusão que muitas vezes é negada aos surdos.

— Os intérpretes garantem que as pessoas surdas possam participar de eventos culturais e de entretenimento, um ambiente que, de outra forma, seria inacessível para elas. Isso reforça a igualdade de direitos ao lazer e à cultura — pontua.

A intérprete em shows Andreza Vitória Bobsin Batista, de 24 anos, que também é surda, concedeu uma entrevista ao NSC Total em Libras, que foi traduzida em áudio por Wesley. Confira:

Ela conta que teve a experiência de trabalhar como intérprete em um show no Festival Saravá, que aconteceu em janeiro em Florianópolis.

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— Quando eu entrei ali em cena, uau, foi um impacto muito grande, porque foi uma experiência de sentir muito a vibração do show. Quando eu fui vendo o público, com pessoas surdas na plateia também sendo impactadas pela música e me olhando como referência […] foi muito emocionante pra mim como surda participar dessa experiência — conta Andreza.

Lei que prevê obrigatoriedade de intérpretes está em trâmite

Em análise na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 664/23 dispõe sobre a presença de um intérprete de Libras em todo e qualquer evento artístico, cultural e social, seja ele público ou privado. O texto ainda insere a medida no Estatuto da Pessoa com Deficiência, que garante à pessoa com deficiência o direito a bens culturais em formato acessível.

Entre os três regimes de tramitação definidos pelo Regimento Interno da Câmara, de urgência, prioridade ou ordinária, esta lei está como prioridade.

Na Paraíba, no entanto, a obrigatoriedade da presença de um intérprete durante espetáculos já é realidade. A lei, sancionada em 2023, dispõe que eventos artísticos no Estado com mais de 500 pessoas devem ter um intérprete.

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Wesley destaca, ainda, que o investimento em acessibilidade aumenta o público de qualquer espaço em 15%, de acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

— Nos últimos anos, a presença do intérprete de Libras tem aumentado cada vez mais dentro de shows, festivais, teatros e dos ambiente públicos. As leis, agora, estão vindo cada vez mais e exigindo que se tenha a acessibilidade completa de Libras, de audiodescrição e outras modalidades de inclusão — pontua Wesley, que movimenta a cena artística inclusiva de Florianópolis há três anos.

O maior desafio, enquanto intérprete em eventos, para Wesley, é fazer com que as produtoras vejam esses profissionais como artistas e também como parte do espetáculo. Ele conta que, muitas vezes, o evento não possui nenhuma pessoa surda, mas os próprios ouvintes que estão presentes se mostram impactados.

— Muitas vezes, a gente escuta relatos como “nossa, eu prestei muito mais atenção no intérprete do que no espetáculo”, ou “nossa, como foi importante, foi um complemento ver vocês ali sinalizando”. O nosso trabalho na arte é muito corporal — conta.

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Wesley explica que os intérpretes em eventos tentam utilizar o mínimo de sinais possíveis.

— A gente tenta fazer uma coisa poética e também visual para a comunidade surda tentar ter a mesma experiência que o ouvinte tem. Então, tanto na questão da iluminação, como na questão da emoção e na intensidade da sinalização, a gente vai tentar sempre trazer para o surdo a mesma sensação e o mesmo entretenimento que o ouvinte está tendo — esclarece.

Repertório na língua-mãe: vibração e emoção

— A pessoa surda acessa todos os locais que nós, ouvintes, também acessamos. Quando a gente garante que o direito linguístico da pessoa surda seja contemplado no show musical, garantimos que as pessoas surdas estejam no ambiente e não só no local. Garantimos que elas consigam entender a letra e sentir junto a emoção de ter o repertório na sua língua-mãe, na sua primeira língua, que é a Língua Brasileira de Sinais — diz Wesley.

Jéssica Caroline Duarte Pereira, de 25 anos, que é intérprete e surda, concorda. Apesar de se considerar tímida e por isso não se sentir à vontade para exercer o trabalho em shows, ainda assim reconhece a importância para a inclusão da comunidade.

— É importante, sim, ter um intérprete em todos os eventos para que todas as pessoas possam entendê-lo — reforça ela.

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Para Letícia Fernandes, de 43 anos, que continua frequentando eventos culturais e sociais mesmo sem a presença de um intérprete, os profissionais agregam muito na emoção do espetáculo.

— Já participei de alguns teatros e apresentações culturais que ofereceram presença de intérpretes. Para mim, foi muito bom, me senti incluída para compreender o contexto, a história, o enredo, a música e enfim… se há intérprete, a emoção aumenta mais — conta.

Letícia também é surda e mora em Florianópolis, onde atua como professora de Libras na UFSC. Ela conhece muitas pessoas da comunidade que desistem de frequentar eventos por não haver intérpretes.

— A cidade promove muitos eventos culturais, por ter apoios e parcerias, então, porque não oferecer acessibilidade a todos, inclusive aos surdos? — questiona.

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Ela também destaca que é importante valorizar a profissão dos intérpretes, ao saber selecionar bons profissionais.

— Contratar qualquer profissional achando que são aptos para esse tipo de interpretação é faltar respeito com a comunidade surda. Nossa língua de sinais não é uma língua inferior às demais, temos estudos linguísticos e publicações comprovando que nossa língua tem o mesmo status linguístico como de qualquer outra língua — pontua.

Ela relata que já foi a eventos onde os intérpretes a fizeram se sentir discriminada e desrespeitada, uma vez que eles não tinham o preparo profissional necessário para estar naquela posição.

— O profissional não sabia o que estava fazendo e eu não estava entendendo nada. No fim, ele ganhou pagamento, eu gastei o meu para nada e ainda saí de lá inconformada pela falta de consciência do “profissional” e da comissão organizadora em querer escolher qualquer pessoa para preencher o requisito — recorda.

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Letícia ainda diz que, apesar de a Lei de Libras existir há 22 anos no Brasil, a sociedade ainda não conseguiu atendê-la ao todo.

— É uma luta diária. Uma luta para mostrar mais visibilidade à nossa língua, à nossa comunidade, à nossa cultura e ao nosso direito — conclui.

Como funciona o trabalho do intérprete em shows

Wesley explica que, para conseguir contemplar da melhor forma as pessoas surdas em eventos culturais, desde o processo da criação do evento, já deve ser pensado na inclusão da pessoa surda e na língua de sinais.

— O ideal é que dentro da produção, dentro da equipe, tenhamos pessoas surdas participando de todo o processo do evento. Quando temos uma pessoa surda no ambiente, ela vai, melhor do que nós, saber quais são as necessidades e como adaptar melhor o ambiente para fazer um evento cultural de fato acessível — pontua.

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Isso, para ele, pode fazer com que pessoas surdas se vejam nos palcos também como produtores culturais, artistas e intérpretes.

É o que pontua Andreza Vitória, intérprete em shows, que ressalta a necessidade de as produções terem a sensibilidade de pensar em uma estrutura voltada para o público surdo: no palco, na luz e na produção, com a participação de artistas surdos.

— Sabendo que o surdo tem isso dentro dele, a poesia, a arte, e conseguindo entender o contexto de que não é uma reprodução do português — continua ela.

Para a preparação, Wesley conta que é muito importante ter um contato direto com a produção do evento, que deve passar o repertório com antecedência para os intérpretes.

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— A gente vai estudar e ler as músicas. Eu geralmente fico, duas semanas antes, escutando só o repertório do artista pensando em estratégias: você fica cantando as músicas, traduzindo e já pensando em como você vai movimentar o corpo junto com os sinais — explica.

Wesley conta que intérpretes trabalham muito com o corpo (Foto: Arquivo Pessoal)

O processo de preparação é muito importante para que, na hora, o intérprete consiga desempenhar e fazer uma tradução fiel, uma interpretação com emoção.

— Se eu pudesse dar uma dica para os intérpretes que querem trabalhar nessa área, é treinar e estudar bastante — recomenda.

Algo importante que o intérprete precisa fazer também é pesquisar, com antecedência, o perfil do artista e do show com que ele irá trabalhar.

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— Você precisa ver se está dentro do teu perfil de sinalização. Se eu sou da área do hip hop, do samba, do rap, talvez com um MPB, com uma música mais calma, eu tenha mais dificuldade — comenta.

Wesley ainda dá um “passo a passo”, do trabalho do intérprete de shows na prática. Confira:

  • Parceria com a produtora é fundamental, para que o profissional receba o checklist da música;
  • Estudar bastante a música e o artista, pensando nas estratégias tradutórias para o evento;
  • Chegar com antecedência, ao menos uma hora e meia antes, para ver o ponto de luz, o local no palco onde o profissional irá ficar, o retorno do som etc.

— São todos os detalhes importantes para, na hora que você for fazer a prática da interpretação, já estar tudo certo — afirma.

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Para ele, também é importante ter uma equipe.

— A gente não trabalha sozinho quando intérprete. É importante ter toda uma preparação, ter uma pessoa da equipe responsável para fazer toda essa parte administrativa e burocrática, para que a pessoa que for interpretar fiqueapenas com essa responsabilidade — conclui.

*Sob supervisão de Andréa da Luz

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