Ela nasceu Geraldo Eustáquio de Souza e só aos 50 anos, depois de três décadas de casamento, virou Letícia Lanz. Casada, mãe de três filhos e três netos, a psicanalista e mestre em Sociologia mineira radicada em Curitiba sempre se identificou com o universo feminino, mas sem que isso significasse gostar de pessoas do mesmo sexo. Apesar de se ver como mulher, gênero para o qual transacionou, Letícia, 64 anos, tem orientação sexual masculina, ou seja, segue casada com a esposa e mãe dos filhos, a psicóloga Angela Dourado. O que pode parecer confuso, alerta para necessidade de mais informação sobre três conceitos diferentes: sexo, gênero e orientação sexual.

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– Sexo genital está entre as pernas, gênero tá no cérebro e orientação sexual está entre os braços, é de natureza afetiva e erótica. Eu nasci macho, sempre quis ser mulher e gosto de mulher – contou recentemente em um dos episódios mais emocionantes de Liberdade de Gênero, série do canal à cabo GNT.

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), entre 2% e 5% da população adulta, entre 17 e 65 anos, é formado por transgêneros. Principalmente no país do mundo onde mais se mata travestis e transexuais, a discussão é importante e aos poucos vai ganhando espaço, graças a figuras que se tornaram vozes da liberdade de gênero, como o cartunista Laerte e a própria Letícia. Pouco antes de embarcar para Florianópolis, onde participou do V Fórum Nacional das Comissões da Diversidade Sexual na OAB-SC na última quinta-feira, a autora de O Corpo da Roupa, o primeiro livro sobre estudos transgêneros escrito originalmente em língua portuguesa, conversou por telefone com a coluna.

Como foi sua a infância e adolescência e como tomou a decisão de mudar de gênero?

Eu digo que não nasci no corpo errado, mas na sociedade errada. Entre carrinho e boneca eu sempre preferi a boneca. Fiquei maldita por isso. Mas justificam que estava errada porque não era o que deus queria. Foi difícil, não havia literatura, não havia apoio. Havia um discurso cheio de ideias vagas e noções obtusas. Apesar de sentir isso desde crianças, só fiz a mudança aos 50 anos depois de enfartar. Acho que não aguentei a pressão de sufocar isso em mim. Conversei com a minha família e o entendimento superou minhas expectativas. Antes disso, Eu era uma das dez melhores consultoras de RH do Brasil. Quando transicionei perdi todos os meus clientes e também tive dificuldade no próprio meio transgênero. As pessoas achavam que, por ser mulher, eu deveria gostar de homem. Nesses grupos também há conservadorismo, talvez por que os membros já tenha sido recusados pelo clube, eles formam outro clube com regras e normas e desenvolvem uma visão reacionária. No fim, fui aceita na sociedade e não fui aceita no gueto.

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Qual é diferença entre sexo, gênero e orientação sexual?

O sexo biológico ou sexo genital é determinado pelo pênis ou a vagina, macho ou fêmea. Enquanto o sexo é biológico, o gênero é cultural. Ele é resultado de um longo aprendizado que não é acaba nunca e é tecido com essa vigilância de gênero. Há uma naturalização de gênero a tal ponto que a macho ou fêmea é traduzido por masculino e feminino, que é gênero. No gênero, existe um processos de identificação. Há machos que se identificam com modelo feminino, outros com o masculino e alguns com os dois. As possiblidade de identificações são infinitas. A questão de gênero não e biológico, mas jurídica. Essa divisão entre modelos masculino e feminino é a fonte da hierarquia e da desigualdade histórica entre homem e mulher. A função de cuidar, por exemplo, que é sempre atribuída às mulheres, não é biológica. Tanto que há casais homoafetivos que adotam crianças abandonadas por mães. As tarefas podem ser distribuídas entre o casal. Já a orientação sexual é de caráter erótico afetivo. O sexo dos seres humanos, diferente dos demais animais, não é destinado unicamente à reprodução. Nosso sexo é simbólico, somos animais com capacidade de simbolizar. Tanto machos quanto fêmeas tem interesse sexual o ano inteiro diferente dos animais. Porque temos necessidade de carinho, de contato físico. E se o sexo não é necessariamente para reprodução porque o macho tem que se interessar pela fêmea?

Em que medida o gênero é construído pelo meio, pela sociedade?

No momento em que a mãe olha no ultrassom que é menino, ela já organiza a vida do indivíduo: quarto azul, bola de futebol, camiseta da futebol. Se é fêmea vai organizar de maneira diferente: quarto rosa, boneca, lacinhos. Não se permite inverter. Você nasceu macho ou fêmea e não homem ou mulher. Por isso a frase de Simone de Beauvoir: você não nasce mulher, você aprende a ser mulher. É um aprendizado sexual. Nenhum menino nasce com desejo de jogar futebol, ele é estimulado e isso. Até a biologia é modificada pelo meio.

Você acredita no fim do gênero?

Sim, vai ser a grande revolução da humanidade. Existem muitas transidentidades. A ideia não é não é pra criar mais identidade, mas acabar com o gênero. E isso significa acabar com hierarquia. Essa diferenciação não faz mais sentido. A mulher ocupa todos os espaços, inclusive os antes destinados apenas ao homem, mas o homem não ocupa os espaços tidos como femininos porque têm medo de se expressar como mulher. Mas o neoconservadorismo não será duradouro graças à rapidez e ao volume de informações que circulam no mundo de hoje. Nós não vamos assistir a essa revolução do fim do gênero, que a humanidade precisa fazer, mas é preciso ser visionário.