Era madrugada de Oktoberfest em 1990.

Enquanto nos pavilhões da antiga Proeb 80 mil foliões dançavam e bebiam ao som de bandinhas típicas, a 12 quilômetros dali, no Sul de Blumenau, a cidade enfrentava a maior tragédia da história da cidade até então. Uma enxurrada rápida, porém destruidora, levou casas inteiras, arrastou carros, ônibus, desbarrancou encostas, soterrou famílias. Foram aos menos 21 mortos em um drama histórico que completa 30 anos nesta quarta-feira (14).

Continua depois da publicidade

A enxurrada do Garcia, também conhecida como Tragédia da Rua Belo Horizonte, aconteceu entre 3h30min e 4h da madrugada de domingo, e ocorreu principalmente nos bairros Glória, Progresso e Garcia. Partes do Valparaíso, no entorno do Zendron, também foram atingidas. Reportagens do Santa na época relatam que as ruas viraram parte do leito dos ribeirões enquanto o asfalto era completamente destruído pela força das águas.

> Receba notícias e reportagens especiais como essa por WhatsApp. Clique aqui e entre no grupo do Santa

Foi uma tragédia sem precedentes na história de Blumenau. Embora tivesse convivido 140 anos até então com dezenas de enchentes, a cidade enfrentou uma situação atípica naquele dia: os morros, pontos de segurança, onde a água do Itajaí-Açu não chegava durante as cheias, vieram abaixo.

Continua depois da publicidade

Hospitais da cidade se mobilizaram para atender os mais de 40 feridos, enquanto nas ruas corpos se acumulavam. A cena foi descrita como “de guerra” por quem a viu, com destroços espalhados por todos os cantos e a lama sendo parte da paisagem. Não à toa, até a enfermaria do 23º Batalhão de Infantaria, voltada aos militares, foi aberta aos civis que precisassem de atendimento.

— Ver os corpos das pessoas sendo limpos, para serem preparados para o sepultamento, foi o momento mais chocante da minha vida — lamenta o ex-prefeito de Blumenau, Victor Sasse.

“Momento mais chocante da minha vida”, diz ex-prefeito. (Foto: Maurício Vieira, Arquivo do Santa)

“Tudo era assustador”

Quem morava no entorno das áreas mais atingidas até hoje descreve em detalhes o que foi aquele 14 de outubro de 1990:

— De repente meu irmão bateu na porta: “tá vendo o que tá acontecendo? Já acharam uma senhora e uma criança mortas” — relembra Alécio Keller, morador da Região Sul de Blumenau.

Continua depois da publicidade

— Escutávamos o barulho de água para tudo quanto é lado. Vi os horrores que tinham acontecido na Rua Belo Horizonte. Via caminhões, bombeiros, pessoas sem roupa tentando se esquentar ao lado do fogão à lenha que tinha sido arrastado para fora de casa. Fomos atrás dos corpos nas capoeiras, nos escombros. Foi um dia terrível. Tudo era assustador.

> Leia também: 10 lugares para conhecer em Santa Catarina — depois da pandemia, é claro

No mesmo dia da tragédia, o prefeito de Blumenau, Victor Sasse, decretou estado de calamidade pública. O governador eleito, Vilson Klenübing, prometeu levar um relatório completo ao então presidente Fernando Collor de Mello, enquanto em Florianópolis, o governador do Estado, Casildo Maldaner, formalizava um pedido ao governo federal para que visitasse as áreas atingidas.

Entre as burocracias, a cidade tentava contabilizar os estragos enquanto corpos ainda eram procurados em meio ao barro.

Destroços espalhados por aquela que era a Rua Belo Horizonte.
Destroços espalhados por aquela que era a Rua Belo Horizonte. (Foto: Arquivo Santa)

“Como se tivesse explodido uma bomba”

Fotógrafo do Santa na época, Gilmar de Souza também recorda minuciosamente daquele dia. Ele estava em Brusque, na cobertura da Fenarreco, quando a enxurrada aconteceu. Depois do trabalho, quando se deitou na cama para descansar, ouviu uma buzina do lado de fora: era o motorista do jornal avisando que uma tragédia havia ocorrido no Sul de Blumenau.

Continua depois da publicidade

— Quando cheguei lá, logo vi o prefeito consolando uma família, com um corpo na frente deles. Ali percebi que o negócio era sério. Subi o morro e então… Meu Deus. Foi apavorante. Nunca tinha visto tanta desgraça. Crianças mortas, pessoas nuas sem nem ter o que vestir. Saí dali em uma caminhonete com sete mortos em cima, uma cena de guerra. Tentei ser profissional, aguentei [as lágrimas], mas quando fiquei sozinho, desabei — confessa.

Gilmar reforça a comparação das cenas como de guerra e diz que nunca na vida havia presenciado um acontecimento tão impactante. Nem mesmo as enchentes de 1983 e 1984, ou até a Tragédia de 2008 — todas vividas por ele — foram tão chocantes quanto outubro de 1990:

— É como se uma bomba tivesse explodido no Garcia. Foi o dia mais marcante da minha carreira. Eram mortes, pessoas machucadas pela violência das águas, jogadas para fora de casa. Essa [cobertura jornalística] foi diferente, porque nas enchentes a gente só ficava sabendo das mortes. Ali não. A morte estava na minha frente, com todos os corpos juntos no mesmo lugar.

Velório coletivo das vítimas da Tragédia do Garcia.
Velório coletivo das vítimas da Tragédia do Garcia. (Foto: Márcio Damásio, Arquivo Santa)

“A bela cidade, num bonito vale”

Hoje repórter da Rede Globo, a jornalista catarinense Sônia Bridi trabalhava na RBS TV de Blumenau no ano da enxurrada do Garcia. Ela cobriu todo os acontecimentos e o desenrolar das investigações sobre a enxurrada, inclusive em rede nacional.

Continua depois da publicidade

Formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ela fez o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) com base na experiência que teve durante as reportagens produzidas depois daquele 14 de outubro de 30 anos atrás.

No vídeo, feito com imagens hoje da hoje NSC TV, Sônia Bridi narra “a bela cidade, num bonito vale, cortado por um belo rio”. Ela expõe o drama das famílias e mostra imagens chocantes que marcaram a tragédia que comoveu Santa Catarina. No material, critica o comportamento do governador eleito (e até meses antes prefeito de Blumenau) Vilson Kleinübing — que chama de “príncipe herdeiro”.

— As pessoas não querem ouvir o que é desconfortável, e aí gostam de botar a culpa em Deus, em São Pedro. Isso [a Tragédia do Garcia] não é uma fatalidade, é consequência de atitudes erradas. As pessoas precisam se conscientizar? Sim. Mas o poder público precisa fazer valer a lei, as regras — disse Sônia Bridi em uma entrevista concedida ao Santa nesta terça-feira (13).

Sasse diz não se arrepender de decisões

No dia seguinte à tragédia, entre as manchetes sangrentas, o Santa publicava uma nota oficial da prefeitura de Blumenau. Em resumo, o município se dizia “consternado”, porém garantiu que não iria cancelar a Oktoberfest: “nossa vocação turística nos obriga a uma posição de respeito aos brasileiros que aqui vieram prestigiar o nosso município”.

Continua depois da publicidade

O fato trouxe críticas à tona. A própria jornalista Sônia Bridi questionou a atitude à época. À reportagem, 30 anos depois, o ex-prefeito Victor Sasse diz que não se arrepende da decisão e afirma que, hoje em dia, avalia a manutenção da Oktober de 1990 como “sensata e racional”.

— A primeira impressão era de encerrar as festividades, porque estávamos de luto. Mas aí ouvimos pessoas e conselhos de que precisávamos restaurar as finanças do município que foram abaladas. Além disso, os turistas estavam vindo para Blumenau em ônibus, com hotéis reservados… Ficaria uma imagem negativa para a Oktoberfest. Foi uma decisão difícil. A ponderação nos levou a manter a festa — alega Victor Sasse.

Capa do Jornal de Santa Catarina em 15 de outubro de 1990.
Capa do Jornal de Santa Catarina em 15 de outubro de 1990. (Foto: Arquivo Santa)

O que motivou a tragédia

Um estudo liderado à época pelo professor Adilson Pinheiro, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), apontou que três fatores foram os motivadores para a Tragédia do Garcia: a chuva torrencial daquela madrugada, aliada à saturação do solo por conta de outros dias de tempo instável e à ocupação desordenada das encostas na Região Sul.

Nessa equação, cada um desses pontos colaborou para que a enxurrada deixasse 21 mortos, dezenas de feridos e centenas de desabrigados. Um deles, porém, é tratado como crucial: na ocasião, ao Santa, Pinheiro disse que “a retirada da cobertura vegetal, o aterramento do leito secundário dos cursos d’água e a construção de imóveis em áreas irregulares” foram determinantes para a tragédia.

Continua depois da publicidade

A alegação é de que embora tenha chovido forte, os 90 milímetros de precipitação não são atípicos, mas foram potencializados pela interferência humana.

“Causa principal da tragédia do Garcia foi a ocupação irregular”, destacou reportagem do Santa. (Foto: Arquivo Santa)

Em 1990, a Polícia Civil chegou a cogitar a hipótese de que um açude, construído no alto do morro, tivesse sido a principal causa da tragédia. À época, se pensava que os 1 milhão de litros de água derramados sobre a Rua Belo Horizonte, após a estrutura se romper, tivessem provocado os deslizamentos e inundações. Cinco dias depois, porém, uma vistoria concluiu que o volume de água que estava retido na lagoa era pequeno demais para a dimensão dos estragos.

Oito meses após a Tragédia do Garcia, o promotor de Justiça, Odair Tramontin, decidiu pelo arquivamento do processo por entender que o crime não poderia ser partilhado e a culpa não poderia ser presumível. Em junho de 1992, outro promotor, Anselmo de Oliveira, chegou a sinalizar que reabriria o processo, porém o caso ficou estagnado.

Trinta anos depois da tragédia que deixou 21 mortos no Garcia, ninguém foi punido.

1990 foi prenúncio de 2008

Para o biólogo e ambientalista Lauro Bacca, a tragédia do Garcia foi um prenúncio do que viria a ocorrer 18 anos mais tarde: a catástrofe de 2008. Ele explica que a ocupação desordenada de encostas, sem fiscalização e sem atitudes do poder público, faz com que meras enxurradas tenham o potencial de se tornar fenômenos fatais — assim como no Sul de Blumenau em 1990.

Continua depois da publicidade

Bacca critica o comportamento dos políticos nessas três décadas que se passaram e afirma que a cidade não aprendeu com a dor dos 21 mortos naquele 14 de outubro. A omissão, para o especialista, ainda pode fazer com que novas tragédias ocorram, em outros pontos da cidade, pelo mesmo motivo.

— Sabe qual foi o aprendizado político daquela tragédia? Quase zero. Não é novidade para Blumenau que esses fenômenos podem acontecer. Desde 1961 nós já temos um alerta para os perigos dos desmatamentos nas cabeceiras do Garcia. Depois de 1961, houve outra enxurrada, em dezembro de 1983. Aí veio a de 1990 e, então, a Tragédia de 2008. Não aprendemos a lição — aponta Lauro Bacca.

O especialista defende que a ocupação irregular tem de ser zerada em Blumenau, vetando também o desmembramento irregular de terrenos em áreas de encostas. Bacca diz que Blumenau precisa “resgatar a tradição de ordenamento e uso do solo” e acabar “com a síndrome do coitadismo” — ao se referir sobre a necessidade em aplicar a lei para retirar famílias das áreas de risco. Caso contrário…

— A próxima tragédia está aí. Está escrito. Pode ser daqui a 20 anos, pode ser semana que vem.

Quem eram as vítimas

Ao todo 21 pessoas morreram. Entre elas, sete crianças.

Continua depois da publicidade

Maria de Lurdes da Veiga (34 anos), Sueli de Jesus (32), Nelson da Veiga (23), Marlise Pires (18), Rosimeri da Veiga (2), Jonatan da Veiga (1), Diva Maria da Veiga (34), Marcia da Veiga (1) e Marli da Veiga (21) morreram na Rua São Boaventura.

Amarildo Gutz (23), Iria Gutz (42), Adolfo Gaspar Correia (35), Angelita Aparecida Gutz (25), Maicon Correia (7), Juliana Beatriz Braganholo (10), Antônia Correia (89), Eliana Correia (30) e Douglas Correia (7 meses), esses na Rua Belo Horizonte.

Salvelina Müller (17) e Ana Patrícia Costa (11), viviam na Rua Brusque.

Nomes que deveriam ser lembrados todos os anos como mártires de uma tragédia tratada por especialistas como “anunciada”. Mas não: foram esquecidos, assim como a própria enxurrada que os matou.

Colaborou com a reportagem: Patrick Rodrigues
Agradecimento: Arquivo Histórico de Blumenau