Quem viveu não esquece. Há exatos 10 anos, o Vale do Itajaí começava a enfrentar uma semana traumática que terminaria com um saldo de 135 mortos e 5,6 mil desabrigados em Santa Catarina. Os quase três meses de chuva que causavam deslizamentos nos dias anteriores em regiões como o Morro da Coripós, em Blumenau, e o Sertão Verde, em Gaspar, chegaram ao ápice no fim de semana de 22 e 23 de novembro de 2008. Foram dias em que o volume de chuva chegou a 494,4 milímetros, quatro vezes o esperado para todo o mês. Dali para frente, os dias que se sucederam foram de horror.

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Deslizamentos, mortes, alagamentos, comunidades isoladas, vítimas sendo enterradas em covas abertas pelos próprios familiares, explosão de gasoduto, resgates de helicóptero, comunidades inteiras em abrigos. Um cenário confortado com a abertura do tempo e as doações de todo o país que lotaram centrais de distribuição.

Novembro de 2008 tornou-se sinônimo de um período de luto. Uma espécie de 11 de setembro catarinense, em que todos lembram com quem estavam e o que faziam. Um período de dor e dramas pessoais indeléveis na memória dos que estavam no Vale do Itajaí ou acompanharam na aflição da distância a catástrofe na região.

Algumas dessas histórias têm um peso emocional maior. São perdas de parentes e famílias inteiras responsáveis por abrir feridas que, ao contrário da natureza, nem sempre cicatrizam 10 anos depois.

É o caso de Francisco Mendonça, morador da localidade Sertão Verde, no bairro Margem Esquerda, em Gaspar. Ele perdeu sete pessoas da família em um deslizamento de terra ocorrido no domingo, 23 de novembro. A esposa Maria Marlene, as filhas Franciele e Débora, que estava grávida, os netos Ester e Elienai, a sobrinha Géssica e o namorado dela, Charles. Todos estavam em uma casa que foi atingida por um morro que desmoronou no começo da tarde.

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A água já havia invadido a casa em que Francisco morava com a esposa e os filhos. Em busca de um lugar seguro, eles saíram já com água pela cintura e foram até a casa de um familiar. Ficava a menos de 100 metros de distância, mas em um terreno bem mais alto. O problema é que a moradia, que nunca representara risco, tinha aos fundos um morro coberto por vegetação, que veio abaixo com as fortes chuvas.

Francisco na época trabalhava como vigia e não tinha conseguido voltar do trabalho porque a localidade já estava alagada. De longe, da casa de outro parente, viu o morro se mexer e imaginou que poderia ter atingido a casa em que estava a família.

– Almoçamos e eu saí na rua. Parecia que balançava o mato, mas já estava descendo (o morro). Entrei na casa e me deu uma ansiedade. Quando saí de novo já veio alguém me encontrar. Vim pelo mato, para ver se era verdade, mas não dava para fazer nada. Já vi que tinha caído tudo. Quando cheguei ali eles não queriam me contar, diziam que eles tinham escapado não sei por onde, mas era para disfarçar. Fui encontrando uns conhecidos e alguns diziam que eles estavam todos lá (debaixo dos escombros).

Susto até para os bombeiros

O sargento do Corpo de Bombeiros de Gaspar, Volnei Camargo de Oliveira, estava no local em que morreu a família de Francisco Mendonça. Ele lembra que a casa em que abrigava as sete vítimas era uma espécie de base da corporação na localidade. O bombeiro chegou a ficar preso na lama após o deslizamento e os colegas de trabalho chegaram a pensar que ele também teria ficado soterrado.

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– Quando chegamos ao local não conseguíamos mais andar na estrada devido à quantidade de lodo. Nesse meio tempo deu um estrondo, um barulho estranho. Olhei para cima: vi que a terra estava se mexendo. Vai dar tempo? Pensei: vou correr. Quando dei cinco passos, aquele lodo me pegou e foi me levando. É como se você estivesse surfando na lama. Não tinha como se mexer, você tirava um pé e afundava outro. Pensei que fosse me cobrir de barro, daí tranquei a respiração. Mas nada. Olhei para cima, pensei: meu Deus, obrigado senhor! – conta.

Depois do susto, um poste com transformador ainda caiu a poucos metros do bombeiro, que ainda estava preso no lodo. Ele conseguiu escapar, segurar em um coletor de lixo e encontrar uma embarcação dos bombeiros, que achavam que ele tinha partido. Dali viu a casa dos Mendonça destruída, uma das cenas que mais o marcou na catástrofe.

Dez anos depois, superar ainda é um verbo sendo redigido. Francisco casou novamente, tem um filho de seis anos. O trabalho de vigia foi interrompido menos de dois anos após a tragédia. Hoje, ele ajuda a esposa a costurar em uma pequena facção montada em casa. O terreno em que a família morreu continua desocupado, em área interditada pela Defesa Civil. Da casa em que ele mora é possível ver o local.

Na época, dizia que levaria muito tempo para se recuperar – se é que isso seria possível. Hoje, entre um balbucio e outro, Francisco fala do episódio com alguma tranquilidade, daquelas que o tempo traz. Ele também convive com as consequências de um derrame. Buscou forças no trabalho e entende o que aconteceu 10 anos atrás como uma vontade superior.

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– Ninguém quer, mas quem está aqui está sujeito a essas coisas. Tem gente que morre por nada hoje, de graça. Se chegou a hora, de um jeito ou de outro você vai.

Leia mais sobre a tragédia de 2008:

::: Há 10 anos morria Luana, a primeira vítima fatal da tragédia

::: Em 2008, deslizamento destruía a BR-470 em Gaspar

::: Em 21 de novembro de 2008, o Vale do Itajaí começava a desmoronar