Cinco anos após a maior tragédia registrada no Rio Grande do Sul, a batalha para julgar os acusados pelo incêndio de 27 de janeiro de 2013 na boate Kiss, em Santa Maria, que acabou com 242 mortos e 636 feridos, tem um novo embate nesta sexta-feira (2). Com acompanhamento de familiares de vítimas, o recurso apresentado pelo Ministério Público (MP) contra a decisão que afastou a necessidade de que os réus sejam submetidos a júri será julgado pelo 1º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) do Estado, a partir das 14h.
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A decisão, contestada pelo MP, foi tomada em 1º de dezembro do ano passado. Na ocasião, o TJ acolheu o recurso de Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão e decidiu por não levar os réus ao Tribunal do Júri e, sim, a um juiz criminal de Santa Maria.
O recurso que será analisado nesta sexta-feira (2) trata-se de embargos de declaração. Esse tipo de agravo busca, conforme o Código de Processo Penal, esclarecer pontos da decisão, mas não modificar a sentença.
A expectativa no MP é de que hoje, mantendo-se o entendimento dos desembargadores e o empate em 4 a 4 da sessão de dezembro, seja revisto o critério de desempate. Ou seja, o empate tem de ser resolvido em favor da coletividade e não dos réus, remetendo a decisão ao júri.
— Usaram um artigo do regimento interno do Tribunal dizendo que o empate beneficia o réu. Por se tratar de crime doloso contra a vida, quem é competente para julgar é o júri. O juiz de Santa Maria entendeu que era júri, na câmara a maioria entendeu que era júri. E houve empate em 4 a 4 no grupo. O desembargador usou o regimento interno favorável à defesa. Na jurisprudência, diz que se tem alguma dúvida, precisa ir à júri. Na dúvida, é pró-sociedade — afirma o presidente da seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS) e advogado da Associação dos Familiares das Vítimas da Boate Kiss, Ricardo Breier.
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O TJ reforçou, por meio de comunicado, que a decisão favorável aos réus deverá ser, em princípio, mantida, pois esse tipo de recurso “não visa modificar a decisão em si”, mesmo que precedentes autorizem “o efeito infringente e modificação da questão de mérito quando há flagrante equívoco”.
“Ou seja, em princípio, ED (embargos de declaração) não muda decisão”, diz um trecho da nota do TJ, observando que não é possível afirmar categoricamente que isso não possa ocorrer, pois é necessário aguardar os votos dos magistrados nesta sexta-feira.
Dolo ou culpa?
Homicídio doloso ou culposo? A definição determina, na prática, o tempo que os acusados – se condenados – ficarão na cadeia.
Se os réus forem julgados por homicídio doloso, a Justiça estará dizendo que eles tiveram consciência da ação e atuaram de forma voluntária para produzir o resultado. Se for considerado homicídio culposo, significa que eles não tiveram a intenção de matar, mas, ao agirem por negligência ou imperícia, acabaram provocando a tragédia.
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O Tribunal do Júri somente é admitido em homicídios por dolo ou dolo eventual – quando, mesmo sem intenção, assume-se o risco de matar. Nesses casos, a pena varia de seis a 20 anos de prisão, podendo ficar entre 12 e 30 anos se for crime qualificado. Na hipótese de ser culposo, a punição é mais leve: detenção de um a três anos, sem qualificantes.
A decisão se é culpa ou dolo também é importante porque define os prazos de prescrição do crime, ou seja, a perda do direito de o Estado punir acusados em determinado tempo. O temor dos pais é de que a tragédia em Santa Maria fique impune.
Mobilização
Antes do meio-dia, familiares de vítimas do incêndio devem desembarcar de ônibus, vindo de Santa Maria, para acompanhar o episódio.
— Estaremos entre 15 pessoas, acompanhando os atos e fazendo o que nos cabe enquanto familiares, que é cobrar da Justiça. Estaremos presentes e esperando uma resposta, seja ela qual for — afirma Flávio Silva, vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
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O pai de Andrielle Silva, uma das vítimas do incêndio na Boate Kiss, diz que a “esperança é a última que morre”, pois sabe da dificuldade que é reverter a decisão no TJ. No entanto, diz que a Associação confia em Breier, que reforça a defesa junto ao advogado Pedro Barcellos Júnior desde janeiro.
O MP confirmou que seguirá com o posicionamento de recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de um recurso especial.
“Não vamos desistir de levar esse caso a julgamento popular”, informou Marcelo Dornelles, Subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do MP.
Essa estratégia é avaliada por especialistas como de difícil reversão. Outra preocupação deve-se ao tempo. Em média, o STJ leva de dois a três anos para julgar um recurso especial. Em outras palavras, a tendência é de não haver desfecho do caso Kiss até pelo menos 2020.
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A defesa dos acusados também chegará ao TJ com reforço: o jurista Alexandre Wunderlich, um dos advogados da Odebrecht no processo da Lava-Jato, se juntou à defesa dos réus.
Já o defensor de Elissandro Spohr, Jader Marques, afirma que a “acusação trabalha fomentando o ódio nas famílias para encobrir os erros dos agentes públicos que conduziram à tragédia”. Segundo ele, a decisão do desembargador Sylvio Baptista foi correta, já que, afirma, o “empate favorece à defesa sempre”.
O caso
— Em 27 de julho de 2016, o juiz Ulysses Fonseca Louzada, da 1ª Vara Criminal de Santa Maria, decidiu que os quatro réus do processo criminal do caso da boate Kiss iriam a júri. A defesa dos réus recorreu da decisão.
— No julgamento do recurso, em 22 de março de 2017, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJ) decidiu, por dois votos a um, que os quatro réus do processo deveriam ir a júri. Os advogados de defesa recorreram novamente ao TJ por meio de embargos infringentes, já que a decisão do colegiado não foi unânime.
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— Em 1º de dezembro de 2017, o 1º Grupo Criminal do TJ acatou o pedido das defesas dos réus e decidiu que os acusados não serão julgados pelo Tribunal do Júri, mas, sim, por um juiz criminal de Santa Maria. O placar terminou empatado, 4 a 4, o que acabou beneficiando os réus, pois o dolo eventual (quando se assume o risco) foi afastado.
— Nesta sexta-feira, a partir das 14h, o 1º Grupo Criminal julgará os embargos de declaração movidos pelo Ministério Público Estadual contra a decisão que afastou a possibilidade de júri popular contra os réus.
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