Mundo sob a nuvem paranoia

* Por Renê Müller

O último livro do romancista norte-americano Thomas Pynchon, Bleeding Edge, chegou às livrarias (físicas e virtuais, apenas em inglês) três meses e 11 dias depois que as primeiras revelações de Edward Snowden sobre a espionagem praticada pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) foram publicadas.

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É provável que nada do que o escritor escreveu em sua nova obra tenha sido afetado pelos segredos que vieram a público. Mas um pouco do que o mundo vive hoje está lá, semeado nas mais recentes 477 páginas da literatura inigualável de Pynchon.

Vale lembrar que trata-se do mais celebrado autor vivo da literatura dos EUA ao lado de Philip Roth. Também é o mais misterioso. Não dá entrevistas. Nunca teve uma foto divulgada desde que começou a publicar suas obras na década de 1960. Vive em Manhattan, não exatamente em reclusão ou solitário: tem mulher, filho e viaja muito. Consegue, no entanto, viver fora do radar da mídia e das pessoas fora de seu círculo social. Acrescente-se ao mistério da vida pessoal que seus livros sempre tiveram na paranoia e em teorias da conspiração um grande alicerce.

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Bleeding Edge se passa em um período histórico ainda a ser muito estudado e discutido: do estouro da bolha das chamadas empresas pontocom, em março, ao ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. Dois momentos que marcaram o advento do século 21 e que ainda servem como combustível para as mais diferentes fantasias conspiratórias.

Para transitar neste novo mundo, Pynchon nos apresenta a protagonista Maxine Tarnow, uma investigadora privada especializada em fraudes, com a licença suspensa para o trabalho, mas que topa xeretar as finanças da hashslingrz.com e envereda em uma teia de delírios virtuais.

Trata-se de uma grande empresa de segurança virtual que trabalha para o governo, comandada por um polêmico e bilionário proprietário, Gabriel Ice. O dinheiro flui da Hashslingrz (e de sua afiliada “laranja”, a hwgaahwgh.com) para destinos estranhos _ estaria financiando os extremistas e a Operação 11 de Setembro? As citações à NSA pipocam.

Só que aí entram no cenário outras características da obra de Thomas Ruggles Pynchon Jr: a capacidade de transitar por dezenas de personagens de maneira cômica e inusitada e por uma enxurrada de citações pop-esportivas que leva até o mais antenado dos leitores ao choque. A estrutura de Pynchon continua fragmentada, com Maxine se dividindo de maneira caótica entre o trabalho perigoso e uma normalíssima vida doméstica com os dois filhos e o ex e talvez-futuro-marido, Horst.

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A investigadora interage com a conhecida galeria de personagens fora do padrão, como Conkling Speedwell, investigador de odores que soluciona crimes e tramas pelos perfumes dos envolvidos; March Kelleher, uma ativista conhecida pelo seu weblog (o blog daqueles tempos) Tabloide dos Malditos; ou Igor Dashkov, russo de negócios escusos como a importação de sorvetes fabricados ainda na União Soviética, ricos em gordura e óleos saturados.

Dentro da paranoia gonzo de Bleeding Edge, há espaço para viagens de crianças no tempo e para o mistério de DeepArcher, um programa/mecanismo estacionado no submundo da internet com o qual, quem sabe, seria possível falar com os mortos…

Assim como seu alterego em Vício Inerente (2009), o detetive particular Doc Sportello, se movimentava em um mundo contorcido por mudanças e choques _ os anos 1960 das viagens sensoriais, do ideal hippie, de Altamont, Charles Manson e da corrida espacial _, Maxine precisa se adaptar ao crescimento dos filhos, ao novo mundo virtual e entender que nem tudo o que está fora do alcance de uma investigadora será revelado.

A não ser quando aparecem figuras corajosas e imprevisíveis como Snowden, Chelsea Manning ou Julian Assange. Figuras que não deixam de ser parecidas com os personagens de Thomas Pynchon. A América, afinal, vai se aproximando do universo pynchoniano.

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* É jornalista