“É do silêncio que provém as palavras, e é ao silêncio que elas regressam, se forem convenientemente utilizadas”, escreve Henry Miller (1891-1980) em uma obra pouco conhecida, Os Livros da Minha Vida, que encontrei em uma edição portuguesa (não existe, pelo que pesquisei, versão brasileira). As palavras devem voltar ao silêncio porque existem palavras em excesso. Elas devem ajudar no que é preciso e então calar. Miller conclui que deveria ter lido menos.
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Ele está falando como alguém que leu pelo menos 5 mil livros, um total que chegou a detalhar mas, pelo menos nesta edição, acabou excluído (para quem gosta de listas, no final há “os cem livros que mais me influenciaram”). De qualquer maneira, ele é um leitor antielitista: “Estou agora consciente de que não precisava ter lido nem um décimo do que li. A coisa mais difícil na vida é aprendermos a fazer apenas aquilo que é estritamente vantajoso para o nosso bem-estar”. O presunçoso que não lê quase nada e imagina captar a essência de tudo só olhando ao redor pode ficar com o ego massageado, mas não é bem por aí. Miller é excêntrico e ambíguo em quase tudo que diz. Ele faz a afirmação acima mas algumas páginas depois submerge na exaltação de romances.
No fim, o mais valioso de Os Livros da Minha Vida é desmistificar a leitura com uma reflexão mais sincera que a média: “Não devíamos ter medo de ler de mais ou de menos. Seria aconselhável entregarmo-nos à leitura da mesma forma que nos alimentamos ou que fazemos exercício”. Miller também questiona as listas canônicas: “Cada homem deve procurar as suas próprias fundações”, defende. Para ele, seria desejável que o bom leitor “tivesse o prazer de fazer descobertas por si, à sua maneira. O que tem valor, encanto, beleza ou sabedoria não pode ser perdido ou esquecido. Mas as coisas podem perder todas estas qualidades se nos arrastarem para elas pelos cabelos”.
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Quem escreve tudo isso é o Henry Miller de 60 anos, já autor de Trópico de Câncer, Trópico de Capricórnio, Sexus e outros. Miller leu muitos clássicos – não faltam referências tão conhecidas quanto Nietzsche, Proust, Conrad, Emily Brontë, Jonathan Swift – e confessadamente apelou a alguns deles para moldar a sua escrita. Mas ele também foi em grande parte moldado por livros mais esotéricos, completamente desconhecidos hoje, e pelas suas muitas experiências mundanas. Aí está o ponto mais alto de Os Livros da Minha Vida: alertar para o valor da fusão entre vivências e leituras. Miller carrega nos elogios, por exemplo, a Blaise Cendrars, que além da profissão de escritor teria acumulado outras 36. O próprio Miller chegou à sua voz literária surrealista, tão singular, a partir de privações, perambulações, empregos apáticos, apego ao sexo e conversas viscerais com todo tipo de gente. Pode soar um elogio batido às vivências, mas é simplesmente o que explica por que os escritores dependentes demais de oficinas literárias são tão soporíferos e por que ler a primeira página de Sexus é nunca mais largá-lo.