Em uma galeria de arte contemporânea em Moscou, um quadro chamado Pátria Mãe representa a Rússia como um elefante abatido ao lado de uma garrafa vazia de vodca.

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Na sua Bíblia do Caos, Millôr chama o Brasil de “um filme pornô com trilha de bossa nova”. Nos seus aforismos, Karl Kraus disse que os “fiascos políticos” foram a maneira da Áustria de chamar a atenção e deixar de ser confundida com a Austrália.

No seu texto sobre cruzeiros, escreve David Foster Wallace: “Seja aqui em cima [no navio] ou lá embaixo, sou um turista americano e por conseguinte sou ex officio grande, corpulento, vermelho, barulhento, grosseiro, condescendente, egocêntrico, mimado, preocupado com a aparência, envergonhado, desesperado e ganancioso: a única espécie conhecida de bovino carnívoro no mundo inteiro”.

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Todo país tem uma boa cota de autodepreciação transmitida pelas artes. Daí que me interessou este título em uma livraria de Budapeste, Homo Hungaricus, 142 páginas de humor e escarnecimento, mas também empatia e orgulho mal contido de um húngaro disposto a definir os seus pares. János Lackfi, o nome do autor.

Não faltam no livro características que estão longe de ser exclusivas. Os homens húngaros, na adrenalina do pós-esporte, mostram um conhecimento enciclopédico do sexo feminino, começam a se gabar em uma “masturbação verbal coletiva apoiada por uma imaginação colorida” e fazem a pessoa que os entreouve achar que “sintonizou a rádio Kama Sutra”. A inércia é outro problema do homo hungaricus, que “não apenas sofre de uma dolorosa passividade, como a gera em quantidades industriais”. Não obstante isso, a população do país é herdeira de “hunos monstruosos que saquearam meio mundo e deixaram para trás prédios em chamas e povos massacrados”.

Lackfi também ironiza a preguiça húngara para aprender outro idioma. Essa preguiça, diz, pode ser resumida na fábula de dois policiais nativos que ignoraram um pedido de socorro em alemão até perceber, tarde demais, que o alemão morrera afogado. “Não acha que deveríamos aprender alemão, afinal?”, diz um dos policiais. “Para quê? Ele [o afogado] conseguia falar a língua mas no final que benefício lhe trouxe?”.

Descendentes de bárbaros, é claro que os húngaros beberiam tanto quanto o elefante russo e fariam refeições pantagruélicas – o vegetal local favorito é a salsicha e frutas são acompanhadas por bacon. Outra distinção nada distinta é ter uma solução “bandida”, esperta para qualquer situação, o jeitinho húngaro.

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Os delírios de grandeza também são comuns: embora eles tenham bastante para se orgulhar (13 prêmios Nobel contra nenhum nosso, por exemplo), pensam que qualquer pessoa famosa é húngara ou “logo vai ser, apenas não sabe ainda”.

O livro vai bastante por aí, mas também tem trechos sem ironia sobre diversos húngaros pioneiros. Um deles foi János Neumann, que em 1944, diz Lackfi, inventou o computador. Na verdade, foi apenas um dos inventores. O próprio autor, enfim, deixa escapar sua hungaridade. Para não lembrar o orgulho todo que existe, com frequência, infiltrado na maneira como nos autodepreciamos.