Uma segunda troca de comando em menos de oito meses e relatos de presos sobre violações de direitos humanos e maus-tratos, inclusive com um vídeo gravado pelos próprios detentos com um celular de dentro de uma cela, despertaram tensão sobre a situação atual do sistema prisional e socioeducativo de Santa Catarina, já com um longo histórico de superlotação e condições estruturais precárias.

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O cenário agora escancarado também traz reclamações de familiares dos apenados sobre a rotina das unidades pós-pandemia e apelos de policiais penais por reforço, hoje sobrecarregados e sob pressão.

O tema ainda é alardeado por denúncias de tortura recebidas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), um órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos que visitou três unidades em Santa Catarina em abril e prepara um relatório para este mês de setembro.

A Secretaria de Estado da Administração Prisional e Socioeducativa catarinense (SAP), subordinada ao governador Jorginho Mello (PL) e que passou a ser chefiada pelo policial penal Carlos Alves há duas semanas, prevê melhorias estruturais e atenção à ressocialização com vagas de trabalho e estudo. O novo secretário afirma ainda se pautar pela legalidade e que não irá tolerar o que classificou como excessos.

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Superlotação e precariedade

Santa Catarina tem atualmente 24.694 pessoas privadas de liberdade, entre as quais a maioria é de homens (23.490) e de presos já condenados (20.038). O sistema é projetado, no entanto, para comportar 20.009 pessoas. Há um déficit, portanto, de 21% (4.685) — percentualmente, é o 16º pior entre todos os estados do país, que, ao todo, têm hoje 649.395 presos para 491.378 vagas (déficit de 24%).

Das 53 unidades prisionais no estado, 41 têm número de presos acima da capacidade projetada. Deste grupo crítico, 12 ainda estão em péssimas condições. A avaliação é de relatórios feitos entre 18 de julho e a última segunda (4) pelas Varas de Execuções Penais do Tribunal de Justiça catarinense (TJSC), que repassam inspeções mensais ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

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O complexo prisional de Florianópolis, na Agronômica, concentra a pior situação em Santa Catarina, com todas as suas cinco unidades em péssimas condições. Há 1.998 presos para 1.968 vagas no local.

— É a pior situação carcerária que temos no estado, é uma unidade do início do século passado, localizada no centro de Florianópolis, com parte da sua estrutura tombada e diversos problemas estruturais — diz a promotora de Justiça Luciana Uller Marin, que coordena o Centro de Apoio Operacional Criminal e da Segurança Pública do Ministério Público catarinense (MPSC).

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Ela diz que precariedade da estrutura é exemplificada também pelo uso de contêineres como celas: há 84 detentos hoje nas “prisões de lata”, número que foi maior ao menos até o mês passado.

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O TJSC determinou a interdição das instalações em um prazo de 90 dias contados a partir do último 18 de agosto. Desde então, 124 dos 208 detentos alojados no local já foram transferidos.

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Entrada da Penitenciária de Florianópolis (Foto: Ricardo Wolffenbüttel, Secom , Divulgação)

A medida atendeu a apelos do MPSC e também do Conselho da Comunidade da Capital, grupo que reúne entidades civis em fiscalização às unidades — cada comarca no estado tem um desses. A presidente do conselho, a advogada Elisângela Muniz, diz que o uso dos contêineres fere gravemente os direitos humanos e que o colegiado também atua para minimizar a superlotação do local.

— Há uma força-tarefa no sentido de o pessoal do semiaberto sair para trabalhar também como forma de escoar essa questão da superlotação — diz a advogada.

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A Penitenciária Regional de Curitibanos, no Meio-Oeste catarinense, também aloca presos dentro de contêineres, com 160 vagas, mas não há previsão para que as instalações deixem de ser usadas neste caso. A SAP, afirmou, em nota, que a utilização da estrutura está de acordo com as resoluções do CNJ.

“Nós tamo (sic) pedindo socorro”

Em Santa Catarina, há ainda uma unidade prisional ruim, 18 regulares e 23 boas pelos critérios do CNJ. Apesar da melhor classificação, ao menos parte delas também tem situação crítica.

No maior complexo prisional catarinense, em Joinville, com 2.338 detentos, a Penitenciária Industrial e o Presídio Regional são tidos como regulares, enquanto o Presídio Feminino é considerado bom.

Nenhum dos três conta, no entanto, com alvará sanitário. Na primeira delas, a prefeitura local já exigiu recentemente, entre outras coisas, reparos em fiações expostas e mofo nas paredes.

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Já da Penitenciária Industrial de Chapecó, em um complexo tido como regular, surgiu um vídeo no mês passado em que um preso diz ter sofrido agressões de agentes em uma ida ao médico e um outro detento lista as condições a que estão submetidos, no que diz ser um ato de desespero.

— Sofri covardia. Me espancaram e fizeram eu tomar água com gás de pimenta goela abaixo — afirma o primeiro deles, que mostra hematomas na região das costelas.

Já o segundo detento mostra dois baldes com água para os ocupantes da cela poderem beber e dar vazão a necessidades fisiológicas, já que a unidade faz racionamento. Ele reclama da falta de luz e de ventilação no local, mostra colchões e paredes mofadas, diz que a comida servida é escassa, que não há roupas para o inverno e que uma televisão foi retirada. Também afirma não haver atendimento de saúde.

— Nós sabemos que nós erremos (sic), que nós temos que pagar pelas coisas que nós cometimos (sic) lá fora. E nós vamos pagar. Mas nós queremos pagar isso aí com dignidade. Nós tamo (sic) implorando, é um pedido de socorro. Nós tamo pedindo socorro, nós não aguentamos mais, nós tamo (sic) no desespero. Pra nós tá fazendo esse vídeo e mandando para vocês aí fora, é porque nós estamos no desespero — diz.

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Acionada pelo Judiciário em Chapecó e pelo Ministério Público estadual (MPSC) para dar esclarecimentos, a direção da unidade comunicou ter aberto uma apuração sobre os presos terem em mãos um celular.

Disse que o preso com marcas de agressão havia sido flagrado pelo escâner local com objetos estranhos no corpo, o que causou a ida ao hospital, onde foram retirados dele um celular e um tubo de cola. Afirmou ainda que, em algumas ocasiões, fez-se necessário o que chamou de uso progressivo da força, com gás de pimenta, para que detentos contrariados saiam da cela para serem revistados.

Sobre o apelo do outro preso, a direção da penitenciária relatou que a falta de luz era momentânea, devido a obras; que forneceu um cobertor a mais a cada apenado nesse inverno; que distribuiu duas remessas de colchões nesse ano; que televisões adulteradas são confiscadas, em atendimento à Lei de Execução Penal (LEP); que as refeições passam por pesagem; que um maior número de baldes depende de doação de familiares dos presos; e que é prestado atendimentos médico e odontológico a eles.

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Ainda sobre o vídeo, a 14ª Promotoria em Chapecó abriu um procedimento para apurar as agressões ao preso. Já a comarca local pediu um exame de corpo de delito. O caso também é acompanhado pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Prisional (GMF), do TJSC.

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— Estamos dando toda a atenção e fazendo todas as investigações possíveis. Realmente, não se pode aceitar este tipo de situação e o que se pode dizer é que a gente tem procurado, naquilo que é possível nas 53 unidades, dar o tratamento digno às pessoas que estão ali privadas de liberdade — afirma a desembargadora Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer, que coordena o GMF.

Fome e maus-tratos

No Complexo Penitenciário do Estado (Cope), em São Pedro de Alcântara, ao menos parte desses problemas também se repetem, embora tenha condições classificadas como boas. Vanessa de Souza, de 33 anos, visita o marido desde o ano passado no local, onde ele cumpre pena por tráfico de drogas.

Ela relata reclamações comuns a outros familiares de apenados sobre, após a pandemia, as visitas terem sido reduzidas pela metade — agora são duas sociais e uma conjugal por mês — e ter sido vetado o envio de alimentos e produtos de higiene aos presos com as sacolas, também chamadas de “jumbo”.

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Sobre as encomendas, ao menos o Ministério Público catarinense é contrário à permissão, por entender que facções criminosas exercem influência sobre detentos através disso.

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É permitida hoje a aquisição no presídio de até R$ 300 em produtos extras, como bolachas e pães, com o pecúlio, depositado por familiares ou adquirido com o trabalho na prisão. Nem todo detento conta com isso, no entanto, e a alegação de parentes é de que os apenados estariam passando fome. Soma-se a isso, segundo Vanessa, operações ostensivas dentro da unidade prisional com maus-tratos.

— Às vezes, eles falam que vão fazer operação, o procedimento. Eles entram ali, vão todos os policiais paramentados, como se fosse do choque, já entram na cela jogando spray de pimenta, mandam os presos tirar todas as roupas e sair só de cueca. Botam sentados no setor onde seria o do banho de sol e passam o dia inteiro ali. Quebram as coisas dos presos, televisões, rasgam as roupas — diz Vanessa.

— Os nossos parentes estão pagando pelo erro deles, mas eles não precisam ser maltratados. Porque, sinceramente, o senhor me diz: se botar um animal dentro de uma jaula e deixar ele passando fome, frio, sendo maltratado, espancado, quando você liberar, como o senhor acha que ele vai sair de lá? — questiona.

Em Florianópolis, a questão da alimentação escassa também se repete, segundo o Conselho da Comunidade da Capital pontuou a reportagem. Os detentos não chegariam, no entanto, a passar fome.

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O cenário de reclamações é parecido ainda em outras unidades do estado, segundo a desembargadora Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer, do GMF, afirmou ao NSC Total. A SAP diz ofertar cinco refeições diárias aos presos. Familiares dos detentos relatam que são apenas três.

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Pressão sobre policiais penais

O sistema penitenciário e socioeducativo é pressionado também pelo número de profissionais abaixo do ideal, segundo o presidente da Associação dos Policiais Penais do estado, Alexandre Mendes. Com 3.350 servidores que atuam nos presídios e em atividades administrativas, o déficit é de 37,9%.

A entidade avalia que são necessários 5.400 profissionais atuando nos presídios. O cálculo é baseado em uma resolução fixada em 2009 pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). No texto, o órgão afirma que a proporção média deve ser de ao menos um agente para cada cinco presos.

Além de submeter os profissionais a danos psicológicos e riscos à própria integridade física, o déficit também compromete as funções dos policiais penais, segundo afirma Mendes, que cita situações como encaminhamento dos detentos para atendimento à saúde e para o banho de sol.

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— Temos que ter efetivo, policiais penais que tirem o preso da cela para atendimento médico, odontológico, para as coisas mais básicas possíveis, como o próprio banho de sol. Se eu não tenho um número adequado de servidores, como vou tirar uma galeria e um pavilhão inteiro de apenados para isso? — questiona o policial penal, que faz menção aos ataques criminosos ocorridos em março deste ano no Rio Grande do Norte, no Nordeste, a mando de grupos que estavam em presídios.

— É um ciclo, uma coisa afeta a outra. E o sistema prisional é extremamente sensível, nós já tivemos problemas no começo do ano no norte do país por conta de problemas simples. Não dar o que é mínimo pode trazer problemas para dentro da unidade prisional e também para a sociedade em si — diz.

Em relação ao sistema socioeducativo, Mendes diz que também há preocupação com o efetivo. Hoje são 617 agentes de segurança socioeducativos para atendimento dos menores infratores. Não há concurso em aberto e, até janeiro de 2024, cerca de 200 servidores temporários deverão deixar o trabalho.

Tortura no socioeducativo

A tensão fora dos muros sobre a situação do sistema prisional e socioeducativo ainda cresceu após o MNCPT revelar, em reportagem do UOL no último dia 29, ter recebido denúncias de tortura no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) de Joinville, que abriga menores infratores.

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A perita Bárbara Coloniese, do MNCPT, relatou que os jovens estariam sendo alvos do “pacote”, prática em que são espancados após terem os pés e mãos amarrados pelas costas. Ela ainda disse na ocasião que o sistema prisional e socioeducativo no Estado seria “uma bomba prestes a explodir”.

Ao NSC Total, a promotora de Justiça Luciana Uller Marin afirma que o MPSC já havia aberto dois procedimentos sobre denúncias de tortura e maus-tratos na unidade, que diz ser a pior do socioeducativo catarinense, no começo de 2022 e em março deste ano, ainda antes da visita do MNCPT.

Marin diz que, pelo que foi revelado pelo MNCPT até aqui, não é possível confirmar se as denúncias recebidas por ambos os órgãos tratam dos mesmos casos. Ela ainda afirma que, desde 2015, o Ministério Público já tem uma ação ajuizada para tratar da situação precária do Case de Joinville.

— Toda eventual denúncia de maus-tratos, tortura ou desconformidade dentro de qualquer unidade de privação de liberdade em Santa Catarina é objeto de observação, preocupação e ação efetiva do Ministério Público — diz Marin, acrescentado que a atuação do órgão vai da condenação de criminosos ao cumprimento da pena dentro da legalidade e à ressocialização do apenado.

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A desembargadora Cinthia Schaefer, do GMF, órgão que passou a atuar sobre o socioeducativo em agosto, afirma que a denúncia de tortura também está sendo acompanhada pelo Judiciário. Ela ainda avalia que o estado de tensão sobre o sistema é permanente, em alusão à expressão usada pelo MNCPT.

— Eu acho que qualquer sistema prisional é uma bomba prestes a explodir. O ideal é que a gente não tivesse pessoas dos mais variados graus de periculosidade privadas de liberdade em locais com mil ou duas pessoas em que a gente não pudesse dar um tratamento [adequado] — afirma.

— O que eu posso dizer é que o sistema prisional de todo o país é sensível, tem que ser visto com muita cautela, muito cuidado. Não podemos esquecer que estamos privando a liberdade das pessoas, e é o bem mais precioso que a gente tem. Então, a gente tem que ter muita cautela, cuidado, respeito para que as pessoas não fiquem revoltadas. Temos ainda, para piorar a situação, um sistema que tem muitas facções. Então, isso deixa o tema bastante nervoso, estressado — completa a desembargadora.

Legalidade e intolerância com excessos

A secretaria estadual que cuida do sistema prisional e socioeducativo catarinense ainda passou por uma segunda troca de comando no atual governo no último dia 25 de agosto. Ela é agora chefiada por Carlos Antônio Gonçalves Alves, que terá como secretária-adjunta a também policial penal Joana Mahfuz Vicini.

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Carlos Alves teve o nome projetado em 2012, ocasião em que uma facção criminosa organizou uma onda de ataques na Grande Florianópolis em resposta à situação do sistema prisional.

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O epicentro da crise era o Cope, em São Pedro de Alcântara, onde presos relatavam denúncias de maus-tratos. O novo secretário de Jorginho era o diretor da unidade à época. A então esposa dele, Deise Fernanda de Melo Pereira, foi morta a tiros por bandidos em um atentado que teria o diretor como alvo.

Alves chegou a responder junto de outros agentes do local a uma ação sobre crime de tortura, mas todos eles foram absolvidos em 2020. O Ministério Público não recorreu da decisão. O próprio secretário falou, em reportagem especial do NSC Total no ano passado, sobre o processo, motivado pela conduta da direção da unidade ao conter uma rebelião. Na ocasião, ele afirmou que não houve excessos.

Após virem à tona as suspeitas de tortura agora no Case de Joinville, o novo secretário e a secretário-adjunta afirmaram que não serão tolerados excessos. A SAP adota diligências na unidade.

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Em entrevista exclusiva ao NSC Total, Carlos Alves e Joana Mahfuz Vicini relataram traçar hoje um diagnóstico de urgências para uma gestão que irá se pautar pela legalidade, com respeito aos profissionais que atuam no sistema prisional e socioeducativo, aos detentos e aos visitantes.

A reportagem procurou a assessoria da SAP por diversas vezes nesta última semana para entrevistar o secretário Carlos Alves, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem. Ele e Joana Mahfuz Vicini, secretária-adjunta da pasta, concederam entrevista no dia 31 de agosto e falaram sobre a situação do sistema penitenciário e socioeducativo de Santa Catarina e os planos para a nova gestão.

*Colaborou Juan Todescatt, repórter da NSC TV

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