Por Fernanda Volkerling, Especial

Sustentabilidade, crise econômica, exclusividade, envolvimento, prazer, exercício criativo, reaproveitamento de materiais, valor afetivo, baixo custo, terapia ocupacional, democratização do acesso aos bens, crítica à lógica capitalista e à multiplicação industrial em larga escala: são vários os motivos que levam cada vez mais pessoas a dedicarem parte do seu tempo a produzir todo tipo de coisa – de gigantescos móveis a delicadas receitas culinárias – com as próprias mãos. E mais ainda: a ensinar outros a fazerem também.

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A cultura do Faça Você Mesmo – no inglês DIY: do it yourself – ganhou força a partir do boom da internet na primeira década do século 21. Com a difusão global das informações e ideias individuais – o que antes ficava menos evidente, já que as notícias e dados circulavam pelo mundo em blocos regidos pelo interesse do grande público – hoje podemos chegar rapidamente até a blogueira que mora no interior do Brasil e que produz seu próprio xampu vegano; seguimos no Instagram o marceneiro que usou a formação em design para construir, entre outras coisas, objetos com madeira achada no lixo; e temos nos nossos favoritos o site da médica que divide seu tempo entre dois hospitais e um artesanato cheio de funcionalidade. O que pode ser visto como passatempo para alguns acaba por se tornar um estilo de vida, e até mesmo uma ética, para outros.

– Esta cultura é impulsionada pelas redes sociais e vídeos mostrando ideias, gerando economia criativa e conforto no lar de cada um, e acredito que isso só vai aumentar. Infelizmente o brasileiro paga muito imposto e o valor de um produto pode comprometer o orçamento da família. Sem esquecer que a mão de obra está cada vez mais escassa e cara – defende o designer joinvilense Fábio Henrique Basso, do site fabiobassoart.com.

Descrevendo a si mesmo como um inquieto por natureza, Basso esteve desde criança às voltas com a mecânica das coisas materiais, abrindo e fechando objetos para observar sua estrutura e funcionamento. Foi daí que se interessou pela profissão de designer, que hoje tem na ¿garagem¿ de casa seu maior templo: é lá, entre centenas de ferramentas, tintas, parafusos, toquinhos de madeira e objetos herdados, que ele produz peças de decoração e de arte a partir de materiais reaproveitados.

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Em seu canal de vídeos no YouTube, é possível aprender a fazer nichos organizadores com tubos de PVC, bebedouro para gatos, luminária de fitas K7, cama para cachorro com pneus usados, mesa de palet, banquetas e muitas outras coisas. Atualmente o designer se divide entre o trabalho em casa, as redes sociais e a participação semanal no programa É de Casa, da Rede Globo.

– O fato de as peças serem feitas pela própria pessoa altera o valor em vários sentidos. Alguém que transforma uma antiga máquina de costura da avó, criando um aparador que vai decorar a casa, inclui aí o valor sentimental, a economia de não ter comprado mais uma mobília, a sensação nostálgica das boas lembranças, as histórias que vai contar aos amigos de como você fez a peça. O valor é adquirido em vários aspectos, inclusive no tempo de descarte deste, pois você vai pensar muito antes de querer se desfazer de algo que você fez – observa Basso.

Ao alcance de todos

A desconstrução do mito do profissional especialista como único capacitado a executar determinados projetos é um dos princípios mais fortes do Faça Você Mesmo: a ideia é que, com informação e os materiais adequados, todos se sintam capazes de produzir por conta própria. Uma busca rápida no Google pelo termo DIY, por exemplo, nos leva facilmente a um documento em inglês que ensina passo a passo a construir piscinas naturais no quintal de casa. Em termos de Brasil, um dos segmentos mais fortes são os blogues que ensinam noivos a produzirem na íntegra a própria festa de casamento, da decoração ao bufê, e que acumulam centenas de milhares de seguidores.

A médica Francine Bagnati, de Florianópolis, trabalha nos hospitais Regional e Universitário, é mãe de três meninos (Pedro, 7, Caetano, 4 e Rafael de 7 meses), e ainda mantém bastante vivo o blog Lá de Casa – ¿pra quem gosta de fazer bonito e com as próprias mãos¿, no subtítulo do próprio site. A página é bem mais do que um canal para aprender a fazer e modificar objetos: a cada dica, Fran compartilha também um pouco da sua história com os visitantes, já que cada tutorial é criado com peças do seu dia a dia, entre pinturas, customizações, comidinhas, costuras etc.

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– As pessoas estão cada vez mais sentindo a necessidade de procurar uma alternativa ao que é muito pronto. O que compramos nas lojas é na maioria das vezes algo que foi produzido em série e não tem a singularidade, o inacabamento, a imperfeição que é própria do produto único – ressalta Francine.

Parte desta demanda do mercado por peças únicas e exclusivas – ou seja, o consumo do que é artesanal – já encontra resposta hoje na indústria das séries limitadas (carros, roupas, bolsas e mesmo alimentos passam por essa segmentação) assinadas por artistas ou designers, e geralmente associadas ao luxo e aos altos preços. O que este setor não consegue captar ainda, porém, é o desejo de participar da manufatura dos objetos.

– Pelo blog consigo notar que as pessoas querem cada vez mais colocar a mão na massa, voltar a fazer as festinhas das crianças, o quarto do filho. E não é um artesanato démodé, aquela coisinha que não interagia com mais nada na casa. É uma coisa moderna mesmo, que tenha a dedicação e que faça a diferença num ambiente – observa Fran.

Na mesma esteira, mas com uma pegada que envereda também pelas reformas e reparos domésticos, Deisy Cruz trabalha oficialmente na área de marketing, mas é no blog Lady Diy que a catarinense compartilha suas grandes invenções: de uma linda cabeceira estilizada a quadros com desenhos manuais e roupas repaginadas, incluindo ainda um forro de madeira para disfarçar vigas no teto – tudo para estimular o visitante a começar suas próprias criações também.

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– Acho bacana espalhar isso, fazer as pessoas verem que não precisam gastar tanto comprando coisas prontas e que não é tão difícil quanto parece. No início você pinta uma parede e acha o máximo da dificuldade mas, quando vê, já está instalando a tubulação da pia! – relata Deisy, que mora em Florianópolis e é natural de Taió.

Para ela, um dos principais motivos que leva as pessoas a partirem para o faça você mesmo é a vontade de estabelecer um vínculo emocional com os bens materiais, para além do ganho financeiro.

– Eu sei de todos os calos que ganhei pra fazer minha parede de tijolinhos, todos os dias que fiquei com dor no braço pra terminar. Não é nem somente pela economia financeira que a gente faz – e olha que economiza muito! – mas pelo prazer de fazer.

Revolução maker

Produzir por conta própria, seja a partir do zero ou reutilizando objetos descartados, aquilo que as prateleiras de lojas e supermercados ofertam, a um custo financeiro geralmente superior, pode parecer uma atitude pouco inovadora – quase arcaica, já que durante muito tempo o capitalismo e seus produtos foram vendidos como sinônimo de progresso – mas, olhando mais de perto, é possível notar o caráter revolucionário deste gesto que os movimentos anticonsumismo já propagavam mais de 40 anos atrás como forma de resistência.

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A década de 1970 ficou marcada como aquela em que o mundo ocidental sofreu seu primeiro questionamento massivo sobre a lógica do consumo desenfreado. De acordo com o pesquisador Rui Filipe Nunes em sua dissertação Uma Nova Estratégia de Design de Produto virada para o Faça Você Mesmo isso ocorreu com a primeira crise petrolífera que desestabilizou o mercado, e a consequente discussão gerada em torno dos impactos ambientais do uso dos combustíveis fósseis. Nesta época, o mundo capitalista, incluindo o Brasil, já havia atravessado períodos de crise na oferta de mão de obra, principalmente nos anos 1950 e 1960, que desencadearam a popularização da bricolagem: a população se aventurava a fazer pequenas reformas em casa por conta própria.

Mas foi a partir do início do século 21, nos anos 2000, que o faça você mesmo começou a ganhar ares de revolução, com o surgimento das feiras de ¿fazedores¿ e a difusão do movimento maker – extensão do Faça Você Mesmo com viés mais focado em tecnologia.

Com a chegada definitiva das impressoras 3D e a criação dos laboratórios de fabricação digital, comumente conhecidos como fablabs, o design entrou de vez como protagonista de uma nova cultura: a fabricação ao alcance de todos.

Foi pensando nisso que o designer Mateus Machado e o publicitário Guilherme Santos, de Tubarão, no Sul do Estado, criaram o projeto CR.U.SH., sigla que engloba as palavras create, upgrade e share (criar, melhorar e compartilhar, em tradução livre), um portal de desenhos de móveis digitais disponibilizados para download.

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– Nosso propósito é espalhar design pelo mundo, tornando-o menos elitizado e mais democrático. Fazemos isto através de móveis digitais com a patente aberta (open source). Pessoas e empresas podem baixar os desenhos, copiar e fabricar para uso próprio ou para vender localmente – explica Mateus.

A ideia é transformar os móveis em arquivos digitais que possam ser enviados e lidos em qualquer parte do mundo. A partir do desenho, basta uma máquina especial chamada fresadora para que qualquer pessoa consiga reproduzir o móvel em três dimensões. Em pouco mais de um ano de existência, o CR.U.SH já soma mais de 7 mil downloads de diferentes países.

Mão nas panelas

A mineira Naná Monteiro vive em Florianópolis desde 2005, mas foi só no ano passado, depois de uma década em solo catarinense, que a designer de produto resolveu largar a profissão de diagramadora de jornal para perseguir um sonho que trazia de sua terra: trabalhar com culinária.

Diferente de muitos cozinheiros que almejam comandar as panelas em um restaurante, Naná optou por investir online: a vontade de transformar a paixão pela cozinha em profissão ganhou corpo diante da recente popularização dos Youtubers e seus milhões de seguidores. Foi aí que ela resolveu criar seu próprio canal de vídeos, nos quais ensina a preparar deliciosas receitas caseiras.

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– Acredito que os maiores benefícios de preparar a própria comida são a possibilidade de comer uma comida muito mais saudável, já que você pode ter todo o controle do processo e escolher os melhores ingredientes, e também a liberdade e independência, fazer o que você quer, do jeito que quer a hora que quer – defende Naná.

O canal começou em agosto e, desde então, ela vem estudando as melhores formas de aliar os tutoriais a uma estratégia de rentabilidade, já que pretende fazer dos vídeos sua forma de subsistência.

Curiosamente, foi no próprio YouTube, por meio de outras pessoas incentivando o Faça Você Mesmo, que ela descobriu tudo o precisava para montar o canal: cenários, ideias, equipamentos e informações sobre o mundo vlogger.