No ano de 913, um lombardo de quem pouco se sabe foi eleito papa e adotou o nome de Lando, nunca usado até então. Vieram depois dele mais de 140 pontífices, sem que nenhum ousasse adotar um nome inédito.
Continua depois da publicidade
Continua depois da publicidade
Todos escolheram para si o de algum antecessor como forma de marcar a continuidade da Igreja e assinalar sua inspiração. João Paulo I chegou a fundir o nome dos papas que o precederam, João XXIII e Paulo VI, em uma dupla homenagem. Na quarta-feira passada, depois de mil e cem anos, o argentino Jorge Mario Bergoglio rompeu essa tradição. Virou o primeiro Francisco.
Ao fazê-lo, deu a entender que seu pontificado será de ruptura e de reinícios, não de continuidade. Em um momento de crise profunda, no qual a Igreja se vê acossada por escândalos sexuais, crimes financeiros e guerra nada santa pelo poder, emergiu com aura reformista.
– O papa é um homem simbólico. Na sacada da Basílica de São Pedro, se curvou e pediu para ser abençoado pelo povo. Isso é inédito. Escolher o nome de Francisco já é, em si, um programa de governo – diz o professor de Teologia Fernando Altemeyer, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Continua depois da publicidade
Esse programa – que nos últimos dias deixou exultante uma parcela de católicos que se sentiam oprimidos sob o governo centralizador e conservador dos dois último papas – se traduziria em uma Igreja mais humilde e aberta ao diálogo. Tudo isso está contido no nome que Bergoglio escolheu para si.
Trata-se de uma referência a Francisco de Assis (1182-1226), um jovem e rico italiano que renunciou a todos os bens para se dedicar aos pobres e promover um novo tipo de Igreja, próxima daquela que católicos acreditam ter sido proposta pelo próprio Jesus. Bergoglio é um profundo admirador do santo italiano. Seu gabinete no arcebispado de Buenos Aires é decorado com um pôster dele.
A euforia entre religiosos ligados à Teologia da Libertação, à qual se uniram até o proscrito Leonardo Boff e o incendiário bispo Pedro Casaldáliga, decorre não apenas do nome, mas também do exemplo. Cada um dos gestos de Bergoglio foram augúrios de inovação e reforma: trocou a cruz de ouro dos papas por uma de ferro, e o carro oficial por um micro-ônibus compartilhado com outros cardeais, para ficar apenas em dois exemplos.
Continua depois da publicidade
Mas, além de ações simbólicas, a partir de agora terá de tomar medidas concretas para viabilizar suas intenções. Uma das mais importantes será preencher os cargos do primeiro escalão clerical, com destaque para o posto-chave de secretário de Estado. Uma tropa de cardeais dispostos a reforçar as frentes de batalha de Francisco é fundamental para levar adiante suas ideias reformistas. Um dos religiosos que deverão ajudá-lo nesta campanha é o gaúcho Claudio Hummes, velho amigo que acompanhou o papa em sua primeira aparição pública no balcão da Basílica de São Pedro.
O gaúcho, segundo a imprensa italiana, teria articulado a vitória de Bergoglio nos bastidores do conclave. Como já conta 78 anos, há dúvidas se assumiria um cargo tão importante e exigente quanto o de secretário de Estado, mas é certo que terá influência sobre o papa. Não por acaso, Hummes é franciscano, da ordem religiosa fundada por Francisco de Assis.
– O novo papa é um jesuíta, mas com alma franciscana. Vai representar um choque de evangelho e de humildade à Igreja – diz o também jesuíta José Roque Junges, que comprovou essa característica há alguns anos em Buenos Aires, ao ver o cardeal Bergoglio sair sozinho de uma estação de metrô, quando esperava que chegasse em um pomposo carro oficial para um encontro.
Continua depois da publicidade
Se Hummes sai engrandecido do conclave, o também gaúcho Odilo Scherer emerge em situação distinta. Ele era apontado como o candidato da Cúria e do contestado ex-secretário de Estado, Tarcisio Bertone. Segundo algumas avaliações, volta ao Brasil como representante do modelo de Igreja derrotado no conclave enquanto a nova forma do Vaticano é moldada pelos gestos e palavras de Bergoglio. Em uma missa celebrada para os demais cardeais, na quinta-feira, anunciou que seu pontificado terá como inspiração “confessar, edificar e caminhar”.
Confira, a seguir, para onde deve caminhar a Igreja de Francisco:
Governo compartilhado
Em sua aparição na sacada da Basílica de São Pedro, Francisco não se referiu a si mesmo como Papa. Preferiu definir-se apenas como bispo de Roma. Quando mencionou Bento XVI, fez a mesma opção: chamou-o de Bispo Emérito. O detalhe animou analistas, que viram ali um sinal de que o governo da Igreja será compartilhado.
Esse foi o caminho apontado pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), que instituiu uma doutrina de decisões colegiadas – ou seja, a Igreja deveria ser governada pelo conjunto dos bispos. Nos 27 anos de João Paulo II como papa, no entanto, a Igreja Católica se transformou em um único “diocesão” com sede em Roma. Autocrático, o papa polonês não chamava os bispos para opinar, mas para dar ordens. Esse espírito ditatorial foi mantido sob Bento XVI.
Continua depois da publicidade
Com Francisco, teólogos, leigos e padres enxergam uma tendência de mudança:
– Dizem que ele escuta duas vezes mais do que fala. Isso era justamente o que faltava, porque o diálogo estava travado. O fato de ser jesuíta já é muito significativo. Quando criou a Companhia de Jesus, Inácio de Loyola disse: façam tudo juntos, nada isolados. Existe aí uma ideia de compartilhar – afirma Fernando Altemeyer, professor de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Perfil dos bispos
No passado, papas como Paulo VI tinham a precaução de alternar a nomeação de bispos com ideias progressistas com a de prelados conservadores. Essa estratégia, que propiciava variedade de pontos de vista, foi abandonada por João Paulo II, com o auxílio de um de seus principais assessores, o cardeal Joseph Ratzinger.
Durante dois papados e quase 40 anos, a dupla perseguiu e eliminou da Igreja quase todo pensamento liberal, esculpindo um episcopado a sua imagem e semelhança ortodoxa. Como forma de acelerar o processo, recorreram a táticas como criar novas dioceses para abrigar aliados e desmembrar bispados sob o comando de adversários. Padres com espírito crítico, por mais brilhantes que fossem, tiveram barrado o seu acesso a cargos mais altos. Mais de 200 teólogos foram perseguidos.
Continua depois da publicidade
O resultado foi a formação de um conjunto de bispos dócil, conservador em questões sociais e morais e intelectualmente medíocre. Uma das grandes surpresas do conclave é que um colégio de cardeais com esse perfil tenha eleito como papa uma das poucas personalidades destoantes.
Acredita-se que uma das ações de Francisco será mudar o perfil dos bispos a partir das novas nomeações.
– Há 203 bispos, o equivalente a 6,5% do total, que ele será obrigado a nomear agora, porque já morreram ou foram aposentados. Além disso, existem cerca de 300 que apresentaram a renúncia por idade ou estão prestes a fazê-lo. A esperança é que o novo papa comece a escolher bispos com maior preocupação social e pastoral – diz Fernando Altemeyer, da PUC-SP.
Continua depois da publicidade
Mente mais aberta
Nos tempos de professor de colégio católico, o padre Jorge Mario Bergoglio lutou para que uma aluna que engravidara não fosse expulsa. Em setembro passado, já como arcebispo de Buenos Aires, aproveitou uma missa para chamar de “hipócritas” os padres de sua jurisdição que se negavam a batizar crianças nascidas fora do casamento.
Os dois episódios revelam um homem com experiência do mundo real – e, no mundo real, católicos evitam filhos ingerindo pílulas, recorrem à camisinha para se proteger de vírus mortais, divorciam-se e casam-se de novo, apesar de tudo isso ser considerado pecado.
Dentro da Igreja, acredita-se que Francisco tem o perfil certo para promover um arejamento em relação a alguns desses tópicos.
Continua depois da publicidade
– Ele pode ser mais aberto, porque está mais perto da experiência das pessoas em questões como permitir que divorciados comunguem e sejam padrinhos de batismo ou na liberação do preservativo como forma de prevenção da Aids – observa o padre José Roque Junges, professor da Unisinos.
Também seria possível uma flexibilização do celibato dos padres, impensável sob os dois últimos pontífices. Ninguém acredita que Francisco vá promover uma liberação geral, mas algum grau de experimentação pode vir – como oferecer autonomia para conferências de bispos decidirem sobre o assunto ou permitir a ordenação de homens já casados, mas não o casamento de quem já é padre.
– O sacerdócio de homens casados não é um problema doutrinal, é uma questão de disciplina. Por isso, pode ser flexibilizado. Já o caso do sacerdócio feminino é um mandato divino e não muda – explica o padre Luiz Fernando Medeiros Rodrigues, também da Unisinos.
Continua depois da publicidade
Outros itens inegociáveis são a condenação do aborto e da eutanásia.
Latino-americanização
A América Latina concentra 425 milhões de católicos, 40% do total. Na Europa, são 257 milhões, o equivalente a 24%. Apesar disso, os latino-americanos são apenas 14% dos cardeais, contra 54% de europeus. Essa desproporção sempre existiu, mas foi acentuada por Bento XVI, que tinha a Europa como preocupação central.
Com a eleição do primeiro papa latino-americano, espera-se que os dias de eurocentrismo católico cheguem ao fim. Dá-se como certo que Francisco fará mais cardeais nos continentes hoje periféricos. Mas isso não é tudo. Analistas apostam que ele vai levar um estilo latino-americano de Igreja para dentro dos muros do Vaticano.
– Há 500 anos, os europeus trouxeram o Evangelho para a América Latina. Agora o Evangelho, processado em nosso continente, vai retornar à Europa. É o momento da volta das caravelas. Isso significa uma instituição mais preocupada com o clamar de quem sofre. A nossa é uma Igreja que tem a experiência da questão social. Não foi aqui que nasceu a Teologia da Libertação? – observa o padre Vicente Zorzo, provincial da Província Brasil Meridional dos Jesuítas.
Continua depois da publicidade
A ascensão de Francisco significa também uma abertura para os demais continentes. Nesse sentido, há um outro Francisco, jesuíta como o novo papa, que pode servir de inspiração: São Francisco Xavier (1506-1552), que renunciou à riqueza para levar o cristianismo à Índia e ao Japão. Há a expectativa de um novo esforço missionário no Oriente.
– A Igreja precisa repensar seu papel na Índia e voltar a falar com a China, porque o futuro passa por lá – diz Fernando Altemeyer, da PUC-SP.
Mudança no perfil da cúria
Uma das frases prediletas do novo pontífice é uma crítica ao que considera um dos “piores pecados” da Igreja: a vaidade.
Continua depois da publicidade
– Um pavão visto de frente é muito bonito. Visto de trás, nos damos conta da realidade – declarou, ainda cardeal, em uma entrevista ao jornal italiano La Stampa.
A alegoria também é uma referência aos últimos anos da Cúria. Por trás das fachadas suntuosas de seus prédios, foi sacudida por suspeitas de corrupção, disputas de poder e escândalos sexuais compilados em um dossiê. Por isso, implantar um novo estilo de administração no Vaticano é uma das principais incumbências do argentino Jorge Bergoglio. Na mesma entrevista à publicação italiana, declarou que “os males da Igreja se chamam vaidade e arrivismo” e estariam por trás da atual crise ao insuflar a ânsia pelo poder.
– Acredito que, pela personalidade do novo Papa, haverá uma mexida profunda na Cúria Romana – aposta o padre Attilio Hartmann, editor da revista Jesuítas Brasil.
Continua depois da publicidade
Na avaliação de religiosos brasileiros, o novo Vaticano deverá perder em burocracia e ganhar em transparência. O excesso de uma e a escassez de outra contribuíram para o clima turbulento que paira sobre a Praça de São Pedro.
– O fato de ser um papa simples pode gerar uma Cúria mais leve e dinâmica, menos burocratizada, que responde rápido aos problemas – acredita o padre jesuíta e professor de História da Unisinos Luiz Fernando Medeiros Rodrigues.
Para o frei capuchinho e professor de Teologia da PUC-RS Luiz Carlos Susin, a aura de segredo que encobre os corredores da Santa Sé também deverá ser amenizada:
Continua depois da publicidade
– O atual sistema de governo mantém formas medievais, sem controle, em que há uma sacralização do silêncio. Mas o diálogo e a transparência pública também são sagrados – sustenta Susin, frei capuchinho e professor de Teologia da PUCRS.
Combate à pedofilia
Um detalhe da visita do papa à Basílica de Santa Maria Maggiore, em Roma, na manhã de quinta-feira, chamou a atenção. Após ser cumprimentado discretamente pelo cardeal americano Bernard Law, Francisco teria virado as costas e sussurrado a assessores que não desejava mais ver o religioso no local, onde vive em uma residência anexa à Igreja. Bernard Law é acusado de acobertar mais de 200 padres envolvidos em denúncias de pedofilia nos Estados Unidos, onde atuou como arcebispo de Boston até 2002.
Esse gesto é interpretado como um sinal de que o Vaticano demonstrará menos tolerância com os desvios éticos dos membros do próprio clero, e que se tornaram uma das maiores manchas da Igreja. O padre e professor de Bioética da Unisinos José Roque Junges acredita que o exemplo pessoal do papa também deverá inspirar um novo modelo de comportamento:
Continua depois da publicidade
– Ele representa um choque de Evangelho e humildade. Não gosta de ser chamado de eminência. Um homem assim dá nova credibilidade moral e ética à Igreja.
Foco social
Os últimos dois papas, João Paulo II e Bento XVI, apresentaram uma característica comum em seus pontificados. Ambos testemunharam o encolhimento no rebanho de fiéis na maior parte do Ocidente.
O perfil do novo pontífice deverá dar um foco mais social à ação do Vaticano tanto em forma quanto em conteúdo. O combate à pobreza e à exploração humana é uma das principais características da trajetória religiosa de Jorge Bergoglio. Além disso, entende que a Igreja não pode se encastelar nos templos, mas precisa sair às ruas e buscar o contato direto com a população.
Continua depois da publicidade
– Ele sinaliza para uma Igreja que vai aonde o povo está, nos bailes da vida. Ele acredita que não adianta ficar esperando na sacristia. Será o Francisco de Deus, mas também o Francisco da gente – acredita o padre Attilio Hartmann.
> Linha do tempo: O caminho de Jorge Bergoglio ao papado
> Em site especial, leia todas as notícias sobre a Sucessão na Igreja