Nas redes sociais, a proposta já circula: um grupo de amigos coloca seus smartphones numa pilha, na mesa do bar. O primeiro que não resistir à tentação e resgatar o aparelho para conferir a internet ou responder à ligação do chefe paga a primeira rodada da bebida para todo mundo. O jogo reflete um novo hábito do mundo digital. Quem tem um dispositivo móvel, como smartphone ou tablet, não consegue desgrudar da tela iluminada. Com a facilidade criada pelos meios eletrônicos de resolver pendências de trabalho durante o lazer, abriu-se um novo impasse. Será que deixar a conversa do bar de lado para responder ao e-mail do escritório representa hora extra?
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A 5ª Vara do Trabalho de Porto Alegre entendeu que ficar de sobreaviso fora do expediente, mas ao alcance do telefone, é motivo para ter remuneração extra. Mas outras decisões da Justiça já haviam decidido em contrário – estar ao alcance dos novos dispositivos é uma decorrência natural da introdução de novas tecnologias. Enquanto o impasse continua, cada vez mais pessoas trocam telefones comuns por smartphones, que permitem acesso à internet – e ao trabalho.
Uma pesquisa da Online Publishers Association, organização internacional que faz estudos de mídia, confirmou que dois terços dos usuários de smartphones dizem que não viveriam sem o aparelho.
Na conversa entre amigos, no tempo para os filhos, durante as férias, sempre há alguém presente, mas ao mesmo tempo distante, dando atenção ao mundo virtual, para decepção de quem tenta conquistar a atenção analógica. Mas a companhia constante desses dispositivos também tem um lado positivo: acelera o trabalho, dispensa idas desnecessárias ao escritório e aproxima a informação. Afinal, se no meio da conversa você não lembra o nome do primeiro-ministro britânico ou quem foi o campeão brasileiro em 1997, a resposta está ali, na pilha de celulares da mesa do bar.
Há quem se torne escravo digital, incapaz de se desconectar até durante o sono – por vício ou exigência do trabalho. Mas existem exemplos de quem consegue se aliar à tecnologia para se libertar do computador preso a quatro paredes e ganhar o mundo. A diferença entre produzir mais e trabalhar mais está em uma fronteira ainda sem demarcação.
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O “plim” é o novo canto da sereia. A cada mensagem, o “plim” do smartphone avisa: alguém pensou em você. Por mais que o conteúdo seja irrelevante, ninguém resiste ao chamado. Afinal, entre as centenas de spams e convites para jogos do Facebook, um dia pode haver algo que realmente seja interessante. E, na esperança de sair vencedor nessa loteria digital, há usuários que são incapazes de impor limites e não conseguem mais se desconectar.
A praticidade de ter a internet em qualquer lugar pode criar escravos digitais, que acumulam cada vez mais trabalho, em vez de resolvê-lo. A questão já foi parar na justiça, com trabalhadores requerendo compensações por causa de e-mails e ligações fora do horário de expediente. Recentemente, a 5ª Vara do Trabalho de Porto Alegre concedeu indenização a um funcionário nessas condições, reabrindo o debate sobre a fronteira entre vida profissional e pessoal.
– Esses equipamentos eletrônicos acabaram com uma separação entre o tempo de trabalho e o de folga. Você tem o seu descanso maculado por e-mails e preocupações profissionais. Hoje em dia, nós trabalhamos muito mais tempo do que antes dessas tecnologias – diz Ricardo Antunes, professor de sociologia do trabalho da Unicamp.
Os dispositivos móveis, como smartphones e tablets, não mudaram apenas a relação das pessoas com o emprego. Alteraram a própria noção do tempo. E a principal dificuldade para que a justiça indenize esse trabalho feito fora do expediente é medir o quanto ele vale.
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– O trabalho era o tempo entre bater o ponto de entrada e de saída. Essa organização caiu por terra porque a gente não começa a trabalhar ao chegar no escritório. Com o botão “enviar” temos uma impressão de que tudo é instantâneo, que não leva tempo nenhum. E aí acumulamos cada vez mais funções que aparentemente não tomam tempo e quando se vê, perdemos o dia todo – alerta Dora Faggin, sócia-fundadora da Vox Pesquisas, que conduziu um estudo sobre as mudanças sociais no mundo digital.
A justiça voltará a discutir essa questão em setembro, já que foram registradas outras decisões em que os e-mails fora de hora não foram considerados hora extra. Por enquanto, ainda não há uma proposta de como compensar essa nova realidade na organização do trabalho.
– Não é só o profissional que invadiu a hora de folga. O funcionário também acaba usando o tempo em que está na empresa para acessar uma rede social, responder a mensagem da família, acessar um site de humor. É uma fronteira que deixou de ser clara – argumenta Dora.
Aplicativos ajudam no trabalho
A exigência de estar 24 horas disponível normalmente não é uma política da empresa. O hábito surge da necessidade de demonstrar boa vontade, agilidade e iniciativa. Quando todos no ambiente profissional adotam a postura de responder a qualquer hora ninguém quer ficar em posição desfavorável em relação aos colegas.
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Bruno Marotti foi proprietário da escola de inglês Quatrum por 29 anos e confirma que a agilidade pega muito bem no mundo profissional. Coordenou equipes das 20 unidades da empresa e achava normal quando um funcionário respondia e-mail à meia-noite, fora do expediente.
– Quem faz isso deve ser mais valorizado. Quem demora dois dias para responder um e-mail quase não é gente – provoca Marotti.
Mas não é em todas as oportunidades que ficar grudado no smartphone significa aumento de produtividade.
– O funcionário médio que fica no escritório vai se distrair com e-mails, alertas e bobagens que tem na internet – diz Carlos Araripe, coordenador do curso de Administração da Escola Superior de Administração e Gestão.
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Hoje consultor em planejamento, marketing e vendas, Marotti está sempre ligado ao celular ou tablet, com medo de perder algum negócio se deixar de ver um e-mail ou atender uma ligação. Esse temor fez com que o consultor desistisse de visitar a irmã, que mora no interior da Bahia.
– Não há a menor chance de perder o contato com o mundo e deixar um cliente ou um fornecedor sem resposta. O meu negócio depende da minha conexão – explica o consultor.
O filho Pedro, de oito anos, vai pelo mesmo caminho. Já não desgruda do aparelho. Nos dias em que dorme na casa do pai, é comum surgir uma dúvida durante a conversa. A dupla corre para o Google atrás de uma resposta.
O hábito que se consolida e será visto como natural quando Pedro estiver adulto aumenta o trabalho de quem o usa para fins profissionais, mas nem sempre a produtividade. O segredo está em concentrar a atenção nos aplicativos que são úteis ao trabalho, aponta Araripe. Foi o que fez o médico Jefferson Braga da Silva, 51 anos, especialista em cirurgia de mão, que atua nos hospitais Moinhos de Vento e São Lucas da PUCRS. Há dois anos, descobriu o sossego pela tela do celular.
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– Estava em São Paulo e um colega precisou de ajuda na avaliação de um paciente. Sugeri: “se tiveres como tirar uma foto da lesão, me manda que eu avalio” – conta Silva.
Esta foi uma sábia decisão, avalia o médico, que introduziu com sua equipe o envio de imagens para uma melhor avaliação do paciente. Além de mais precisão, conseguiu reduzir quase pela metade os atendimentos presenciais no hospital.
– Faço plantões de 24 horas, mas sou acionado apenas quando é necessária a avaliação de um especialista. Antes, o residente ou outro médico me relatavam o caso e eu não tinha real noção do problema. Hoje, eles fazem o atendimento e me enviam as fotos e as radiografias. Em alguns casos, até um vídeo. Recebo no iPhone, analiso e oriento. Me desloco apenas quando há a indicação de cirurgia – diz o cirurgião.
Nessa mudança, ganharam os dois lados. O paciente que tem o diagnóstico agilizado e o médico que pode emitir opiniões à distância. Segundo Silva, a tecnologia aumentou seu tempo com a família e reativou a vontade de ter uma casa mais afastada do trabalho, na zona sul da Capital.
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Quando é difícil desconectar
O executivo Eduardo Ferreira, 42 anos, proprietário da empresa Sinergy, já levou muita multa por enviar mensagens enquanto dirigia. Precisava cumprir a aflitiva meta de responder e-mails a cada cinco minutos. Chegou ao limite do estresse por não conseguir largar o aparelho nem mesmo em meio ao sono. Há um ano, vem se exercitando em prol do uso responsável. A mais recente tentativa, há 15 dias, rendeu-lhe um prejuízo.
Durante viagem de negócios a Florianópolis, reservou duas horas para contemplar a natureza e se desconectar. Buscou um restaurante aprazível. Escolheu uma mesa no deck e resolveu fazer uma última ligação, antes de testar seus limites e desligar o telefone. O aparelho escapou da mão, ultrapassou as madeiras do piso e foi parar no mar.
A proposta de tranquilidade acabou ali mesmo. Ferreira saiu correndo para o shopping para comprar um novo celular.
Deixar de fazer viagens por medo de não conseguir se conectar ou não se permitir um tempo com o aparelho desligado, como no caso de Ferreira, são um dos sinais de alerta que apontam um uso não saudável dos dispositivos móveis.
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– É mais fácil identificar um viciado em computador do que em smartphone, porque quem tem um dispositivo móvel não deixa de sair e de ter uma vida social. A família e os amigos é que dão o alerta. Quando eles começam a reclamar do uso excessivo, é hora de reavaliar – explica a psicóloga Luciana Ruffo.
A publicitária Monique Sabater, 28 anos, trabalha na Agência Matriz e não abandona o telefone nem na hora de dormir: o aparelho repousa embaixo do travesseiro. Reconhece que em muitos momentos perde o contato social e frequentemente protagoniza a típica cena: estar em um grupo de amigos e colegas que, por instantes, trocam a conversa presencial pelo dispositivo móvel.
– É normal estar com amigos ou colegas em uma mesa de bar ou restaurante e, quando fica aquele minuto de silêncio, todos correm para a internet do celular para ver se está acontecendo algo. A gente nem sente. É uma doença – brinca.
O fascínio tem justificativa. Não é só de trabalho que são feitos os aplicativos dos smartphones e tablets. Redes sociais, jogos, notícias e e-mails pessoais são os elementos que fazem o usuário trocar uma conversa interessante em uma festa de família por futilidades compartilhadas por conhecidos.
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– Agilizou muito a minha vida. Ao mesmo tempo que te aprisiona, te dá liberdade. Antes de ter smart
phone, ficava no escritório esperando a resposta de um cliente. Agora, posso esperar o retorno de um e-mail e resolver meus problemas enquanto me divirto com as amigas – alega Monique.
Desconectar não é mais uma opção. O ideal seria disciplinar o uso, para evitar as situações em que o smartphone atrapalha e até desabilitar as notificações automáticas para evitar que a atenção seja roubada por mensagens de pouco valor. Mas o especialista em gestão Carlos Araripe argumenta que ponderação não é o forte do brasileiro:
– Somos uma sociedade desperdiçadora de uma forma inconsciente. Se faz um churrasco para cinco pessoas, compra-se carne para 10. E desperdiçamos tempo também. Quando se tem uma conexão ultramoderna é fácil perder a noção do razoável. A gente nem sente. É uma doença – diverte-se.
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MODERAÇÃO E EDUCAÇÃO
Não seja o chato do smartphone, observe os locais e as situações em que o aparelho atrapalha:
Desligue os alertas e resista à tentação de conferir se chegou mensagem em cinemas e teatros. A luz do aparelho incomoda quem está tentando se concentrar no espetáculo.
Dê a preferência a quem optou por encontrar você pessoalmente. É falta de consideração sair com um amigo e ficar com os olhos grudados na tela do celular, dando atenção a quem está longe.
Observe se você não está ajudando a disseminar esse comportamento: evite mandar questionamentos ou cobranças por e-mail aos seus colegas fora do horário de trabalho. Anote o recado na agenda virtual e envie a mensagem no dia seguinte.
Durante as férias, premie sua família com um descanso de verdade. Determine quem ficará responsável por resolver os assuntos de trabalho, cadastre uma mensagem automática informando quem poderá ser acionado até a sua volta e desative o alerta dos e-mails profissionais.
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Não poste tudo que você está fazendo o tempo todo. Os seus contatos nas redes sociais não estão interessados em saber que você está tomando café. A não ser que seja um café sensacional com um preço camarada, aí vale a dica.
SINAIS DE ALERTA
Fique atento aos comportamentos que indicam um uso excessivo e prejudicial dos dispositivos móveis:
Confere os avisos e alertas mesmo em momentos impróprios (no cinema, no teatro, no trânsito)
Abrevia compromissos para que possa voltar a usar o smartphone quando não há sinal ou bateria
A família e os amigos reclamam que você não larga o smartphone
Deixa de viajar para lugares interessantes porque não há sinal de celular
Não consegue resistir à internet, mesmo em horários em que se comprometeu a não acessar (durante o jantar, de madrugada, em férias)