Cada grande acontecimento que marca coletivamente a biografia da humanidade exige adaptações – e provoca mudanças; algumas boas, outras ruins. Mesmo algo aparentemente pequeno, como a criação da pílula anticoncepcional nos anos 1960, pode desembocar em revoluções comportamentais nunca antes imaginadas: nesse caso, uma verdadeira reviravolta no conceito de sexualidade, a efervescência do movimento estudantil, o avanço inédito do feminismo, o movimento hippie e mesmo o surgimento dos grandes festivais, como o lendário Woodstock.

Continua depois da publicidade

Já nos anos 1980, o chamado "amor livre" perdeu cor diante de uma ameaça que causava verdadeiro pânico: a AIDS, vista como uma sentença de morte em uma época em que ainda não havia remédios eficazes no tratamento da doença (que, hoje, mesmo permanecendo sem cura, deixou de ser o fantasma que era há 40 anos). Graças à pílula, engravidar sem querer já não era mais um problema – mas agora surgia outro, muito maior. A descoberta do HIV acelerou o desenvolvimento de métodos de proteção contra essa e outras doenças sexualmente transmissíveis, mas também deflagrou preconceitos que permanecem na sociedade até hoje.

Neste primeiro semestre de 2020, vivemos mais um desses momentos de virada: com a pandemia do novo coronavírus, pouca gente pode dizer que tem, hoje, a mesma rotina que tinha há quatro ou cinco meses – algumas práticas foram incorporadas ao dia-a-dia, enquanto outras foram deixadas de lado. Mas será que tudo isso é temporário? Será que alguma hora tudo vai voltar "ao normal"? E que "normal" será esse? Aquele antigo normal, que vivíamos em 2019, ou um "novo normal"?

Para muita gente, o que a pandemia fez foi impulsionar tendências que já existiam: no meio cultural, por exemplo, não é de hoje que as plataformas de streaming vêm crescendo e ameaçando a soberania dos grandes estúdios hollywoodianos, inclusive em premiações tradicionais como o Oscar – mas, em março de 2020, o tempo que os usuários passam consumindo streaming aumentou nada menos que 85%, segundo um estudo feito pela Nielsen Company, empresa de informação e medição de dados com sede em Nova York, e publicado pelo site Hollywood Reporter. O número é mais que o dobro do aumento registrado no mesmo período de 2019.

– As indústrias cinematográficas de grande porte levaram um golpe bem forte, principalmente com o fechamento das salas de cinema – opina o agente cultural Armando Appel, que atua há 24 anos na área das artes e da cultura. – É possível que daqui para frente haja menos dessas produções gigantescas. Já o streaming se fortaleceu. Eu acho que isso abre mais espaço para produções independentes; de menor porte e menor custo.

Continua depois da publicidade

Não é só o streaming, é claro: conteúdos digitais de modo geral – lives, tours virtuais por museus e galerias, experiências de realidade virtual e aumentada – devem sair da crise fortalecidos.

– As livrarias físicas já vêm encolhendo há tempos, em tamanho, público, número, e eu acho que a pandemia foi mais um empurrão na direção da extinção desses estabelecimentos – opina Armando. – Acho que a venda de ebooks deve aumentar, e mesmo a venda de livros de papel pela internet, para aquelas pessoas que fazem questão de ter o livro físico. Nesse segmento, tem um novo mercado se abrindo, que é a impressão de livros por demanda: é uma possibilidade que já existe, mas que deve crescer nos próximos anos.

Mas será que as experiências 100% virtuais substituem as experiências ao vivo, sensoriais?

– As duas experiências são coisas totalmente diferentes. – ressalta Armando. – Mesmo que pela TV você até consiga acompanhar um espetáculo com uma riqueza de detalhes maior, por exemplo. O que acontece é que a experiência ao vivo vai além de acompanhar o show em si, de ver, de ouvir a música. É uma vivência, da qual a música é só uma parte. As pessoas não viajam quilômetros e quilômetros para ir ver pessoalmente a Mona Lisa, mesmo com dezenas de fotos em alta qualidade disponíveis na internet?

– As pessoas têm necessidade, carência até, da vivência social, dos encontros presenciais; e por isso eu não acredito que centros culturais, como teatros e salas de cinema, vão deixar de existir. – ele prossegue. – Mas acredito que eles vão se reinventar, encontrar novas maneiras de fornecer arte e socialização para o público. Esses novos formatos ainda não estão definidos, mas é justamente aí que mora a oportunidade. Agentes culturais, criativos de modo geral, precisam se dedicar a descobrir essas novas estratégias. O drive-in, por exemplo, está ressurgindo como opção: é algo antigo que foi resgatado agora, e que pode servir para filmes, shows musicais, até teatro.

Continua depois da publicidade

Novas práticas tendem a andar junto com novas mentalidades. Será que, trancado em casa e consumindo cultura (na forma de livros, filmes, séries, música, novelas) talvez como nunca, o público vai passar a valorizar mais o trabalho dos artistas? Em relação a isso, Armando é reticente:

– As pessoas estão tendo sim uma grande oportunidade de valorizar os artistas e a cultura, mas eu acho que isso só vai acontecer verdadeiramente quando as pessoas tiverem uma melhor educação; e isso em um sentido bastante amplo. – ele argumenta. – Quanto mais fraca é a educação, mais distantes nós ficamos de entender e valorizar a arte. Eu acho que as duas coisas andam juntas. Mas se houver essa maior valorização da cultura e da arte, claro, daremos um salto gigantesco em relação à situação que temos hoje.

– Se isso acontecer, mais empresas podem finalmente entender que este é um grande nicho onde investir. – continua Armando. – Já que vemos a possibilidade de uma revisão de crenças e valores neste "novo normal", eu gosto de pensar que as empresas vão se tornar mais socialmente responsáveis – o que também é uma tendência que já existe; com as empresas pouco a pouco se tornando mais sustentáveis, por exemplo.

Não só sustentáveis – mas, diante da pandemia, mais flexíveis, e mais conectadas e preocupadas com seus colaboradores. É como pensa a psicóloga Júlia Pacheco, que atua há 13 anos na área de RH, e trabalha em uma empresa com quase dois mil funcionários em diversos estados do Brasil.

Continua depois da publicidade

– Estamos exercitando mais a empatia, porque estamos conectados com pessoas que estão trabalhando de casa: nesse esquema, você enxerga mais o outro como ele é, e não apenas como um profissional, um funcionário – ela relata, falando sobre a experiência de home office que a companhia em que ela trabalha vive pela primeira vez. – Parece que, quando estamos em um ambiente exclusivamente dedicado ao trabalho, entramos em um "modo automático" em que não somos nós mesmos.

Júlia conta que, antes do coronavírus, o home office era uma prática muito esporádica na empresa; mas que, desde o dia 17 de março, 100% dos times estão em home office, e sem previsão de retorno.

– No começo foi bem desafiador, mas eu acho que é uma prática que veio para ficar – ela avalia. – Mesmo se ou quando voltarmos, já estabelecemos que pelo menos uma porcentagem do time vai seguir em home office. Gigantes da tecnologia já se posicionaram na internet, nas redes sociais, dizendo que não pretendem voltar a fazer trabalho presencial pelo menos até o fim do ano; e que, eventualmente, podem passar a ter apenas escritórios-conceito, com todo mundo trabalhando de casa em definitivo. Tudo isso cria tendências e leva outras empresas a questionar suas práticas.

A especialista relata que o sistema de home office exige adaptações profundas: algumas pessoas têm uma maior dificuldade de criar vínculos com os colegas e com a própria empresa trabalhando de casa; e que isso é especialmente desafiador em relação a colaboradores que já foram contratados em home office. Outros funcionários têm dificuldade de limitar seus horários e demandas, e acabam, em casa, trabalhando mais do que no escritório, o que causa uma grande sobrecarga mental.

Continua depois da publicidade

Superado o período de adaptação, porém, o home office tem vantagens.

– As pessoas estão curtindo mais as suas casas, interagindo mais com as pessoas que moram com elas, fazendo a própria comida em vez de só comer fora, não estão perdendo tempo com deslocamento ou se estressando no trânsito… E nós somos uma coisa só: se estivermos mais satisfeitos na vida pessoal, vamos fazer entregas melhores no trabalho também. – Júlia justifica.

À companhia, o home office também permite maior flexibilidade nas contratações: é possível contratar colaboradores de outras cidades e estados para trabalhar de forma remota, aumentando até mesmo a diversidade cultural da empresa – e isso, segundo Júlia, sem perdas de produtividade.

Júlia também relata que a empresa vem adotando, ou reforçando, práticas que vão ao encontro da responsabilidade citada anteriormente pelo agente cultural Armando Appel:

– Estamos falando muito sobre saúde mental, prestando muita atenção nisso. – ela afirma. – Fizemos webinars com psicólogos, psiquiatras; estamos estimulando os líderes a perguntar e checar como as pessoas estão se sentindo. Falar sobre a saúde mental no ambiente de trabalho deixou de ser um tabu.

Continua depois da publicidade

– Também é importante que as empresas mantenham uma comunicação muito próxima, para manter todos os times alinhados à cultura empresarial – cita Júlia, ao listar as adaptações pelas quais as companhias precisarão passar em um eventual mundo em que o home office não seja mais uma exceção, e sim a regra. – Cada empresa precisa desenvolver ou encontrar o melhor canal para manter uma comunicação constante, frequente e transparente com seus colaboradores, para aproximar pessoas que estão distantes fisicamente. Sem o trabalho presencial, qualquer ruído vira uma coisa gigantesca.

Outra prática que parece ter vindo para ficar é a de um maior cuidado pessoal – especialmente no que diz respeito à higiene; não só das mãos e do corpo, mas da casa, do carro, de objetos pessoais como celulares e notebooks. Estabelecimentos, ambientes públicos e espaços onde normalmente há grande circulação de pessoas também precisaram passar a prestar ainda mais atenção nisso.

– A área da aviação sempre se destacou por ter altos padrões de higienização; tanto na limpeza de aeronaves, quanto nos filtros de ar usados em aviões, até nos processos de limpeza dos aeroportos – afirma Ricardo Gesse, Diretor Geral do Floripa Airport. – Claro que essa crise traz melhorias, mesmo para padrões sanitários que já eram altos. Temos álcool em gel disponível em todo o terminal; instalamos uma proteção de acrílico nos balcões de atendimento, para preservar os colaboradores; a rotina de desinfecção no aeroporto foi reforçada; fizemos marcações no chão para orientar o distanciamento entre as pessoas. Acho que o novo padrão sanitário que estamos praticando deve sim ser mantido depois da pandemia.

Estabelecimentos, ambientes públicos e espaços onde normalmente há grande circulação de pessoas também precisaram passar a prestar ainda mais atenção na higienização
Estabelecimentos, ambientes públicos e espaços onde normalmente há grande circulação de pessoas também precisaram passar a prestar ainda mais atenção na higienização (Foto: Tiago Ghizoni)

Ricardo também imagina que o surgimento e os impactos do coronavírus possam popularizar tecnologias que ainda estão dando os primeiros passos na indústria da aviação.

Continua depois da publicidade

– Já existe a tendência dos aeroportos touchless: o passageiro faz um cadastro pelo aplicativo da companhia aérea, por exemplo, e quando chega ao aeroporto faz o check-in por reconhecimento facial – ele explica. – Essas coisas já são possíveis hoje e estão em testes em alguns aeroportos, mas ainda têm um custo alto; e, pelo menos até agora, não eram vistas como prioridade pelas empresas. É possível que essa tendência seja acelerada pelo movimento atual. Os aeroportos se encaminham para ser cada vez mais tecnológicos e touchless. Viajar de avião já é extremamente seguro, mas deve se tornar ainda mais seguro com esses movimentos.

Até mesmo na moda a pandemia parece ter agido como catalisadora de tendências – muito mais do que criadora de tendências totalmente novas. É o caso, é claro, das máscaras.

– Há tempos a Ásia já convive com esse item de maneira mais cotidiana – conta Jamilly Machado, professora e coordenadora do curso de Design de Moda da Universidade Estácio. – Já vimos a máscara em desfiles de moda de estilistas asiáticos, que inserem esse item como um acessório de passarela. E ela veio se popularizando mesmo antes da pandemia, porque a moda asiática vem ganhando espaço principalmente nos mercados europeu e norte-americano. Em janeiro, a cantora Billie Eilish usou uma máscara da Gucci no Grammy, e ela é um símbolo fashion para toda uma geração, que foi impactada por esse uso.

Ela explica, porém, que a máscara só veio parar no Brasil quando a necessidade se impôs:

– Por aqui, a máscara não surgiu no processo produtivo de moda, digamos assim, de surgimento de tendências: ela surge como um acessório funcional de proteção – diferencia. – Não é um objeto de desejo, é até fruto de uma obrigatoriedade. Claro, com a popularização do uso, surge uma tendência de personalização, e mesmo de escapismo: começam a surgir as máscaras com bordados, com frases de efeito, com estampas.

Continua depois da publicidade

Jamilly explica que esse processo de personalização é inerente à moda – que, por si só, é expressão.

– É o que chega primeiro no outro, o que já diz alguma coisa sobre quem você é – comenta. – Se minha máscara é decorada com strass, você já deduz alguma coisa sobre mim; se eu tenho "fora, Bolsonaro" escrito na minha máscara, você já deduz alguma coisa sobre mim. Por meio da moda você põe a sua assinatura no mundo.

A máscara só veio parar no Brasil quando a necessidade se impôs
A máscara só veio parar no Brasil quando a necessidade se impôs (Foto: Tiago Ghizoni)

Ela faz questão de frisar, porém, que o escapismo não pode descambar em alienação:

– É importante lembrar que a máscara é, e vai continuar sendo, um acessório de proteção: não podemos, por exemplo, criar máscaras que sejam bonitas, sejam símbolo de status, e não sejam eficazes em proteger. Não dá para querer sair de casa de propósito, sem precisar, só para mostrar sua máscara nova, que combina com seu look. Não dá para abrir mão da proteção em favor da glamourização: tem muitas máscaras por aí que são lindas, mas que ergonomicamente são um desastre.

Continua depois da publicidade

Na opinião da professora, o boom da máscara, no Brasil, deve durar cerca de um ano e meio – tempo suficiente, talvez, para o desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus, e para que o medo de contaminações diminua. Mas Jamilly lembra que, historicamente, já houve casos de roupas ou acessórios que surgiram com uma função exclusivamente funcional, mas depois foram definitivamente incorporados ao guarda-roupa:

– A calça no vestuário feminino surgiu como um item essencialmente funcional – exemplifica. – Durante a Primeira Guerra Mundial, quando precisaram assumir funções nas fábricas, nas indústrias, as mulheres não conseguiam exercer essas funções com anáguas, vestidos e espartilhos; e adotaram as calças como um vestuário que permitia maior mobilidade. Foi Coco Chanel quem viu esse movimento, junto ao surgimento do movimento feminista, e colocou as calças como item fashion no guarda-roupa da mulher.

As máscaras são o exemplo mais evidente, mas o mercado da moda tem vivido outros reflexos da pandemia de coronavírus.

– Muitos designers estão trabalhando com maior tecnologia: tecidos antibacterianos, por exemplo; sprays de lavagem rápida… – diz Jamilly. – Estamos vendo um desenvolvimento acelerado de pesquisas de ponta nesse sentido. Mais do que nunca, é hora de incorporar a tecnologia à moda. Do outro lado, também estamos vendo a tendência da criação de roupas maiores, para garantir um maior distanciamento social. Claro, isso é feito de forma bastante lúdica, em desfiles, por exemplo; mas retoma a ideia de quando as mulheres usavam aquelas saias super amplas nos vestidos: nem todo mundo sabe, mas isso era uma ferramenta para afastar os homens, obrigá-los a manter uma distância adequada das mulheres.

Continua depois da publicidade

Entre todos os comentários e mesmo especulações reunidas aqui, parece haver um fator em comum: a tecnologia. Tem sido assim, afinal, desde que a mais nova tecnologia era o domínio do fogo ou a invenção da roda. Nas artes, na moda, na saúde, na higiene, nas relações profissionais e de trabalho, nas viagens e momentos de lazer, é principalmente por meio da tecnologia que a humanidade supera obstáculos – e, tantas vezes quanto necessário, estabelece um novo normal.