No cemitério Jardim da Paz, em São Borja, transcorreu na tarde desta quarta-feira por quase duas horas a perícia de técnicos da Polícia Federal e da Comissão Nacional da Verdade no jazigo do ex-presidente João Goulart, o Jango, morto em dezembro de 1976.
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O trabalho, liderado por Amaury Alan Martins de Souza Júnior, chefe da Divisão de Perícias da Polícia Federal, consistiu na medição do túmulo e da distância entre ele e as demais sepulturas. Trenas comuns e eletrônicas foram utilizadas. Fotos foram feitas de diversos ângulos. Elas serão inseridas em um software que projetará uma maquete 3D do local. São procedimentos necessários para facilitar a retirada da ossada, que deverá ocorrer até o final do ano.
A equipe de Amaury também entrevistou dois pedreiros que atuam no cemitério. O objetivo era conhecer o posicionamento dos despojos de Jango no jazigo, que é ocupado por nove falecidos, entre eles o ex-governador Leonel Brizola e outros integrantes da família Goulart. O pedreiro Vitelmo Ortiz explicou que os restos de Jango estão em uma gaveta fechada de tijolos maciços, posicionada ao lado direito do jazigo, a segunda de cima para baixo.
– Está tudo ok. Verificamos que não há nenhum sinal de abertura recente – explicou Amaury.
Ele também afirmou que tapumes irão cercar a sepultura no dia da remoção para evitar a exposição de cenas que possam representar algum constrangimento ou dor sentimental para a família. Durante a perícia desta quarta-feira, pessoas da comunidade de São Borja foram à frente do cemitério. Alguns reprovavam a intenção de levar o corpo de Jango a Brasília. Pediam que o deixassem descansar em paz. Outros apenas observavam.
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Um senhor humilde, mãos engraxadas, se aproximou da grade do cemitério em meio ao trabalho dos peritos. Começou a contar histórias do passado. Era Artur Dorneles, que conviveu com Jango desde criança. Seus pais eram empregados do ex-presidente. Depois, quando Jango já estava exilado na Argentina, ele era responsável por levar dinheiro e documentos ao líder trabalhista. Ele sustentou uma tese que já gerou a publicação de um livro: Jango não teria sido assassinado pelas ditaduras do Cone Sul, mas traído por pessoas que trabalhavam com ele e queriam tomar-lhe dinheiro. De fato, um cofre de Jango foi arrombado após a sua morte. Uma mala de dinheiro, proveniente da venda de uma fazenda, também sumiu. Artur ainda criticou a viúva Maria Thereza Goulart por não ter permitido a autópsia do corpo quando ele chegou a São Borja. Depois de se emocionar três vezes, em pouco mais de dez minutos, disse que ia embora e saiu andando.
A Comissão Nacional da Verdade, no entanto, não trabalha com essa hipótese. A exumação do corpo justamente será feita para tentar identificar a presença de alguma substância que teria sido misturada em seu remédio a mando de ditaduras, no contexto da Operação Condor, para envenená-lo. No documento oficial, ele sofreu morte natural por ataque cardíaco. A tese de assassinato também é respaldada pelo depoimento do ex-agente uruguaio Mario Neira Barreiro, que diz ter participado da ação, e por indícios como a morte de outros líderes políticos brasileiros, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek, no mesmo período.
A próxima etapa do processo de exumação de Jango será uma reunião no dia 17 de setembro, em Brasília. É possível que, nesse dia, seja marcada uma data para a exumação do corpo e para o traslado para Brasília, onde serão feitos os exames de DNA, antropológico e toxicológico.
Pela manhã, em reunião na prefeitura, membros da Polícia Federal e da Comissão Nacional da Verdade foram fortemente cobrados por autoridades políticas e lideranças comunitárias de São Borja. Há um generalizado temor de que o corpo vá para Brasília e jamais volte. Um memorial está sendo construído na capital federal para preservar a história de Jango.
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Ficou acertado que uma audiência pública será realizada em São Borja dias antes da exumação. Nela, a ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, assumirá o compromisso, em nome do governo brasileiro, de que a ossada retornará ao município gaúcho. Os são-borjenses concordaram, mas ainda insistem na possibilidade de registro da promessa em cartório. Dois representantes da cidade, o prefeito Farelo Almeida (PDT) e o ex-vereador e advogado Iberê Teixeira, serão integrados a partir de agora a todas as reuniões do processo de exumação de Jango.