Elas vestem roupas divertidas para distrair as crianças, vão de porta em porta em busca dos atrasados e estudam ao máximo para combater as notícias falsas. A missão de ser vacinadora se revela muito mais complexa do que a “simples” aplicação de doses. E no enfrentamento aos movimentos antivacinas, que ganharam força na pandemia do coronavírus e fizeram cair os índices de cobertura, essas profissionais de saúde lideram correntes de imunização para proteger o máximo da população.

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Os relatos de quem está na linha de frente da saúde pública em Santa Catarina trazem à tona a resistência dos pais para vacinar os filhos contra doenças evitáveis com uma simples picada. A hesitação, provocada principalmente pela desinformação, pode ser expressa em números. No ano passado, por exemplo, o Estado não alcançou a meta do Ministério da Saúde de proteger 90% do público-alvo com as vacinas BCG, Pentavalente, Poliomielite e Meningo C, obrigatórias no calendário infantil.

O cenário é ainda mais delicado quando se trata das vacinas sazonais. A imunização contra a gripe, que já chegou a ter 95,79% de cobertura em 2020, caiu para 53,51% passados quatro anos. A da Covid-19 não tem, atualmente, nem metade do público-alvo com a terceira dose. Quando o assunto é dengue, recente vilã que superlotou os hospitais e provocou 331 mortes no Estado, nenhuma região de SC chegou a 50% de cobertura. O Vale do Itajaí, inclusive, tem o pior percentual de adesão ao imunizante.

— Essa queda do índice vacinal é extremamente preocupante para a saúde pública, porque no momento que alguém está vacinado, ele também consegue proteger as demais pessoas dentro de casa, dentro da sua comunidade. Então, a curto e longo prazo, nós vamos ter claramente um aumento de casos de doenças que são preveníveis com vacinas, como meningites, por exemplo. Vai haver mortes onde não deveria — analisa a infectologista Sabrina Sabino.

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É nesse contexto desafiador, com reflexos negativos à saúde pública em curto e longo prazo, que vacinadoras de Blumenau e região atuam em completo anonimato para tentar melhorar os índices. E elas fazem de tudo um pouco. Carla da Silva Casas, Arledi Aparecida do Amaral e Daiana da Costa Camargo, personagens desta reportagem, são vacinadoras apaixonadas pela profissão e se desdobram para estreitar os laços com a comunidade e conscientizar sobre a necessidade da imunização.


E no enfrentamento aos movimentos antivacinas, que ganharam força na pandemia do coronavírus e fizeram cair os índices de cobertura, essas profissionais de saúde lideram correntes de imunização para proteger o máximo da população.

Carla da Silva Casas, Arledi Aparecida do Amaral e Daiana da Costa Camargo, personagens desta reportagem, são vacinadoras apaixonadas pela profissão e se desdobram para estreitar os laços com a comunidade e conscientizar sobre a necessidade da imunização.” />

É trabalho de formiguinha

Não eram 9h da manhã quando Arledi chegou à casa da família Tamboni, em Indaial. O sol brilhava, mas não o suficiente para afastar o frio daquela manhã. Nas mãos, ela carregava os imunizantes dentro da caixa térmica, fiel companheira da vacinadora há quase duas décadas. O objetivo ali era proteger contra a gripe dona Aminda e seu Aldino, no auge dos 83 e 89 anos, respectivamente. Tira um casaco, puxa a blusa para o lado e a picada está dada. Simples, rápido e fundamental, nas palavras da própria moradora, que faz questão de frisar: nunca deixou atrasar nenhuma vacina dos dois filhos.

— É um trabalho de formiguinha, mas vale a pena porque distribui saúde — garante Arledi, servidora na Unidade Básica de Saúde Márcia Maria Andreatta, no bairro dos Estados.

Arledi vai de casa em casa quando é preciso, para garantir vacinação (Foto: Patrick Rodrigues, NSC)

Ela vê com preocupação os movimentos antivacinas e destaca a importância cada vez maior da busca ativa pelos pacientes, uma tarefa para a qual conta com o apoio dos agentes comunitários de saúde. Arledi revela, inclusive, que quando tem mais intimidade com as famílias e vê as crianças no mercado, por exemplo, dá uma lembrada para passar no posto e atualizar a caderneta de vacinação. É uma relação de confiança construída ao longo do tempo e marcada até por perrengues.

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— Saímos da unidade de saúde para fazer vacina em um casal na área rural e, quando chegamos, encontramos o portão fechado. Detalhe: tinha um boi na entrada e ninguém queria sair da Kombi. Até que a enfermeira resolveu que eu e ela íamos juntas. Logo que abriu o portão, o boi veio correndo em nossa direção. Eu entrei primeiro e fechei a porta, e ela não conseguia abrir. Depois que ela entrou, o dono do sítio veio em nosso auxílio, saímos do carro e ele contou que esqueceu que íamos fazer vacina e acabou deixando um dos mais bravos pastando na frente — recorda a vacinadora.

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Com tantos anos de experiência, Arledi já pegou até carona de tobata para conseguir ir nas casas mais afastadas e fazer a imunização. Outras tantas vezes, fez o caminho a pé quando carros não passavam mais. Cansativo, mas recompensador, garante, após receber abraços calorosos de agradecimento e ter a certeza de que está na profissão certa.

Hoje ela e as colegas de outros postos estão sempre conectadas pelo WhatsApp. Foi pelo grupo que desenvolveram uma estratégia para garantir o máximo de aproveitamento das doses. Quando uma ampola é aberta e uma delas percebe que não terá pacientes para todas as doses naquele dia, logo a mensagem no celular apita das outras e se uma vacinadora tiver público para aquele imunizante, logo fazem a troca, ligam para algum paciente. Tudo para não ter desperdício.

— É gratificante porque a gente sabe que está plantando uma sementinha boa. Quando eles retornam, é fruto desse trabalho. Quando volto para casa, tenho a sensação de que atingi os meus objetivos — reitera Arledi.

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Vacinadora há quase 20 anos, Arledi é apaixonada pela profissão (Foto: Patrick Rodrigues, NSC)

Responsabilidade e comprometimento

O pequeno Caleb da Costa chegou à Estratégia de Saúde da Família Gasparinho Quadro I, em Gaspar, para receber a primeira vacina com apenas cinco dias de vida. Os pais, Camila e Carlos, foram criados com as cadernetas em dia e dizem que não seria de outra forma com o primogênito. Mas diferente deles, que trataram de procurar logo a unidade para receber a BCG, fundamental contra a tuberculose, outros pais não fazem o mesmo: a última vez que Santa Catarina alcançou a meta de 90% desse imunizante foi em 2018. No ano passado, a cobertura ficou em 70,86%.

Carla Casas, a vacinadora responsável pela imunização de Caleb, conhece de perto os desafios para proteger todas as crianças. Apaixonada pela profissão, ela fez questão de decorar a sala com temas infantis para tornar o espaço mais acolhedor e atrativo. Chegou, inclusive, a comprar fantasia de dinossauro para receber os pequenos em datas comemorativas. Até o astronauta que colore o teto com estrelas ela fez questão de adquirir para deixar de lado o clima de medo por causa da injeção.

— Eu amo cada criança, cada adulto que vem aqui. Eu sou apaixonada pela imunização, e acho muita responsabilidade e comprometimento uma vacina, porque ela salva a vida de uma pessoa — afirma.

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Carla aplicando a primeira vacina de Cabed, com cinco dias de vida (Foto: Patrick Rodrigues, NSC)

As dezenas de fotos ao lado dos pequenos refletem a relação de carinho e confiança que Carla trabalha para criar com as crianças e também com os adultos. Essa é a chave para garantir que as famílias voltem e se protejam a cada nova campanha vacinal. E quem não retorna, ela vai atrás. Na imunização contra a dengue, atualmente liberada para pessoas entre 10 e 14 anos, a vacinadora fez o levantamento dos 498 adolescentes na área dela e com o apoio dos agentes de saúde fez busca para ninguém ficar sem vacinar.

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Dados do governo do Estado apontam o Vale do Itajaí como a região com menor adesão à vacina em Santa Catarina. É uma tarefa árdua, mas ainda mais gratificante, confessa Carla, que escolheu a área da saúde justamente pela admiração que tem a esses profissionais. Ela mostra com orgulho no celular a imagem do desenho dela feito por uma das crianças que imunizou e também recorda com gratidão as vezes em que estava até no mercado e foi reconhecida e abraçada pelos menores.

Aliás, a relação dela com alguns dos pequenos começou muito antes da sala de vacina, quando trabalhava no hospital de Gaspar:

— Tens uns casos que marcam bastante, que eu ajudei no próprio parto cesárea deles. E aí eu saí do hospital, onde ajudei as mães a tê-los, vacinei quando eram bebês e hoje eles estão com quatro anos. Eu vejo a evolução deles — fala, entusiasmada.

Carla fez da sala de vacina um lugar mágico para as crianças (Foto: Patrick Rodrigues, NSC)

Vacinação precisa ser tratada como prioridade

A influência das tias levou Daiana da Costa Camargo para área da saúde e a prática diária como técnica de enfermagem a fez ver que estava no caminho certo. Mas quando se tornou vacinadora, passou a entender o trabalho em outra perspectiva. Não era mais sobre tratar doenças, como ocorre na maioria das vezes quando os pacientes chegam às unidades de saúde. Agora, era sobre dar proteção para o resto da vida, como ela mesma diz.

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Vacinadora em uma pequena unidade, na Estratégia de Saúde da Família Alfredo Hoess, na Vila Itoupava, em Blumenau, ela criou uma relação de confiança com os pacientes. Os laços estreitados, por vezes, são fundamentais para vencer questão como dúvidas, medos e até de informações falsas ou distorcidas. Foi assim com uma mãe que não queria deixar a filha adolescente receber a vacina contra o HPV, vírus associada aos cânceres de colo de útero e de pênis. Daiana relembra da resistência da mulher:

— Eu disse: mãe, não estamos incentivando [a iniciar a vida sexual]. Ninguém está dizendo que ela vai sair daqui e vai começar, porque isso é a educação que você deu para ela em casa. Mas quando ela tiver 20, 30, 40 anos, ela vai ter uma vida sexual ativa, e você não vai saber com a tua filha está se relacionando. Então o teu papel agora é proteger ela. A escolha dela lá na frente, é ela que vai fazer — relembra.

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Daiana é uma apaixonada pela profissão (Foto: Patrick Rodrigues, NSC)

Trabalhando em uma comunidade mais rural, onde a distância é uma realidade a ser superada, Daiana usa a empatia para entender as dificuldades das famílias. É o caso, por exemplo, dos horários de atendimento. Por que não vacinar alguém que chegou mais cedo ao posto por causa do ônibus? Por que ficar uns minutos a mais para imunizar uma criança que a mãe trouxe após o trabalho? É assim que ela mantém baixos os índices de evasão da vacina:

— Eu me dedico de corpo e alma. Se eu puder ir atrás e ficar incomodando até a pessoa voltar, para mim é uma satisfação, colocar uma carteirinha em dia, convencer um pai e uma mãe a fazer uma vacina que eles não aceitavam inicialmente. Se a gente ama, se a gente gosta, a gente vai dar uma proteção eternamente. Assim como a gente se preocupa com a educação, a vacina é para a vida toda.

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Aliás, para Daiana, frustração profissional é ver alguém com uma doença prevenível com vacina. Ela conta que na realidade diária do posto de saúde ocorre de alguns pais não vacinarem os filhos, mas aí vem a recomendação para que converse com o pediatra, tire as dúvidas, e na maioria das vezes as famílias retornam e aceitam ao menos a aplicação de alguns imunizantes, revela.

Defensora ferrenha das vacinas, ela ressalta o esforço diário de cientistas dia e noite para estudar cada vírus e fórmula, para desenvolver as vacinas que salvaram milhares de vidas ao longo das últimas décadas.

— Uma coisa que me deixou triste como profissional foi ver a morte de um bebê por coqueluche, no Paraná. É uma doença que hoje em dia a gente não pode aceitar, porque tem vacina para mãe, para o bebê. Então qual é a dificuldade, onde se falhou? Quando acontece um caso desse como profissional a gente se sente frustrado, porque em algum momento se deixou essa família passar sem vacina — desabafa.

Enquanto os índices de vacinação caem, histórias como de Carla, Arledi e Daiana pelo menos trazem esperança.

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Vacinadora da Vila Itoupava defende ciência (Foto: Patrick Rodrigues, NSC)

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