Longe dos octógonos de luxo e dos combates profissionais, a falta de regras e fiscalização nos campeonatos amadores de muay thai e MMA (Mixed Martial Arts) dá sentido ao termo “vale tudo”. Por mais de três meses, ZH mergulhou nos subterrâneos das lutas e comprovou, com documentos e testemunhos, que a explosão de popularidade das artes marciais e a multiplicação de academias formaram um ambiente perigoso para fãs do esporte. Esta reportagem, a segunda da série, revela que presidentes de federações gaúchas de artes marciais negociam a venda de graduações.

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Não apenas os campeonatos de MMA e muay thai servem como fonte de arrecadação para federações e professores, como mostrou a reportagem “Em 78 segundos, inscrição de repórter é aceita em campeonato“, publicada no final de semana em ZH. A venda de graus (faixas) para transformar iniciantes em instrutores, professores ou mestres é prática corriqueira, que faz circular dinheiro.

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Amparados pelas facilidades da Lei Pelé, donos de academias e de associações se juntam e fundam federações para si. Apenas no Rio Grande do Sul, existem pelo menos seis entidades de muay thai e duas de MMA.

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– O inchaço ocorre pela falta de legislação específica. Pessoas não qualificadas estão abrindo federações, achando que, com isso, podem sair dando certificados ao deus-dará. São entidades que se preocupam simplesmente com a arrecadação de valores – afirma Enildo Pacheco, presidente da Federação Gaúcha de Muay Thai Tradicional.

Para o lutador Thiago “Minu” Meller, atleta do Bellator, segundo maior evento de MMA do mundo, a situação das artes marciais é “preocupante. “Hoje em dia, é muito fácil ter uma federação”, avalia Minu.

Faixa custa dois salários mínimos

Em quatro das seis federações de muay thai oficializadas no Estado, a reportagem de ZH negociou a compra de diferentes graus que autorizam pessoas a dar aulas, formar equipes e promover graduações.

Numa delas, a reportagem levou a transação até o final e obteve, depois de seis dias de conversas por e-mail e telefone, o certificado de grau preto, acessível somente aos professores com anos de experiência. O documento, que custou dois salários mínimos (R$ 1.448), foi assinado pelo presidente da Federação de Muay Thai do Rio Grande do Sul (FMTRS), Éderson Galvão, para “Carlos Braga”, nome usado por ZH na negociação.

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O prajied (na imagem abaixo, o que foi recebido pela reportagem) – como se chama a faixa no muay thai – foi adquirido sem qualquer exame de conhecimento da luta e da filosofia oriental. Não foi preciso nem sequer um encontro pessoal entre o comprador e Galvão. Nas conversas, o repórter ponderou que já dava aulas da modalidade e treinava havia anos, mas não tinha nada que comprovasse o trabalho.

– Exame para a preta é dois salários mínimos. O que eu poderia fazer pra ti: eu não vou te examinar, tu já dá aula, já tá há tempo aí trabalhando. Tu pagaria essa equiparação de dois salários mínimos, e a gente mandaria a certificação – disse Galvão.

Em 3 de dezembro, foi feito o depósito na conta bancária indicada por Galvão. Minutos depois, um “alvará” (imagem abaixo) da FMTRS chegou por e-mail, autorizando “Carlos Braga a ministrar aulas de muay thai como grau preto – treinador na cidade de Caçapava do Sul”, município em que o repórter disse que residia e trabalhava. A opção pela cidade foi aleatória.

Assim, o jornalista, que desconhecia qualquer técnica da luta, tornou-se apto a formar turmas, contando inclusive com apoio jurídico da FMTRS.

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– Por exemplo: um aluno teu se machucou e vai te processar ou alguém quer pensão. Temos um advogado à disposição – afirmou Galvão.

Filiação significa renda para entidades

Logo depois, ele introduziu na conversa o tema dos eventos. Quando alguém adquire a condição de professor, fica vinculado à entidade e passa a integrar um circuito de atividades que geram renda. Para se manter vinculado, existe a obrigatoriedade de participar de cursos de arbitragem, competições e graduações.

– A gente tem o estadual, brasileiro, mundial, sul-americano. Olha, tu vai ter algumas coisas para oferecer aos teus alunos. Todo mês fazemos alguma coisa. Tu vai dizer: ‘bah, mas são dois salários mínimos (o grau preto)’. Mas é um investimento. Se tu tem cem alunos hoje, eles vão ver que tem isso e aquilo para fazer, e vai vir mais gente – ensinou Galvão.

Na última terça-feira, a reportagem foi até Cidreira, na academia de Galvão, para buscar o prajied grau preto (imagem abaixo), o alvará, o certificado, o calendário de eventos da federação e uma apostila. Além de incentivar o mais novo professor de muay thai a realizar competições com o apoio da entidade, o presidente da FMTRS orientou a fazer graduações de alunos trimestralmente. Essas promoções de faixa podem gerar arrecadações de até R$ 180 por lutador.

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– Até azul claro (sexto prajied na federação de Galvão), tu pode fazer a cada três meses. Tu tem um percentual de 50% de cada aluno – disse, indicando que o “repórter-professor” ficaria com a metade do valor pago por atleta para se graduar.

Outra negociação foi feita com o mestre Giovani Máximo, diretor-técnico da Federação Riograndense de Muay Thai (FRMT). Depois de dizer que não tinha nenhum documento para provar que havia treinado nos e de explicar que precisava do grau preto para continuar dando aula em uma academia de Caçapava, o repórter ouviu uma proposta alternativa. Sem a necessidade de nenhum exame ou demonstração de conhecimento, receberia o prajied azul escuro, que lhe autorizaria a dar aulas como “instrutor”.

Giovani Máximo, diretor-técnico da Federação Riograndense de Muay Thai (FRMT) / Reprodução: Facebook

– Se não tem documento, a gente equipara o cara na graduação azul escuro. A gente dá seis meses para se adaptar ao sistema da federação e concede um alvará – disse Máximo, que garantiu que o prajied oferecido pela FRMT dá o direito de manter turmas de muay thai.

– Tu pode dar aula, com certeza. Nesse caso aí, tu vai ser instrutor – assegurou.

Para se graduar prajied azul escuro, o repórter teria de pagar R$ 200 à federação de Máximo. Também seria necessário assinar um “termo de compromisso” em que uma das cláusulas determina: “Participar ativamente de torneios”.

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“Tu será nomeado prajied branco com vermelho”

Alexandre Carneiro (Reprodução/Facebook)

Presidente da Federação Gaúcha de Muay Thai e Muay Boran (FGMM), Alexandre Carneiro conseguiria entregar um prajied de grau vermelho com branco, destinado a instrutores, e um alvará de qualificação de professor. Isso poderia ser feito mesmo depois de o repórter informar que não tinha como comprovar experiência. O custo: meio salário mínimo pelo prajied e R$ 250 por ano pelo alvará.

Carneiro dispensou a necessidade de exames técnicos. Afirmou apenas que gostaria de conhecer o interlocutor e fazer uma avaliação. Depois, ele revelou como funciona a expansão do alcance das federações de muay thai pelo Interior:

– Depois de três ou quatro meses, a gente marca para fazer a graduação dos teus alunos. Em questão de um ano, tu tá como o pessoal de Santa Maria. Tinham 12 alunos há dois anos. Hoje, são 80.

“Vamos ser sinceros: todo mundo vende diploma”

Vinícius Salvato de Lima (Reprodução/Facebook)

Membro da Associação Capital de Muay Thai, Vinícius Salvato de Lima deixou claro que poderia conceder o grau preto à reportagem, mesmo sem a comprovação de um passado atuante na arte marcial. O custo foi fixado em uma salário mínimo, mais uma anuidade. Mas Vinícius exigiu pelo menos um treinamento e um exame.

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– Tu teria de vir um dia para fazer um treino e eu te conhecer e, depois, viria para o exame – disse Vinícius, que depois de estabelecer as condições, falou sobre como funciona a promoção de grau:

– Na verdade, vamos ser bem sinceros: todo mundo vende o diploma. Isso é uma verdade. Só que a gente normalmente outorga o diploma para as pessoas que merecem. Muitos falam mal de mim: “Ah, o mestre Vinícius tá vendendo diploma”. Eu não vendo diploma nenhum. Eu outorgo para o pessoal que acho ser merecedor.

VÍDEO: em 78 segundos, repórter fica apto a lutar campeonato de MMA:

O que disse Ederson Galvão

Não é uma venda de grau. Ele me disse uma coisa, me relatou uma coisa, e eu simplesmente acreditei na palavra dele. Como ele já dá aula numa academia, não tem como dizer assim “não, vou ver se tu é professor”.

O que disse Vinicius Salvato

Isso aí é uma prática que existe (a venda de grau). Com relação à minha pessoa, é uma mentira. A gente não pode formar ninguém faixa preta de uma hora para outra. É tirada uma folha corrida na polícia, no Fórum. Acontece de eu ter graduado alguns alunos que eram faixas pretas de outras modalidades. Mas para graduar grau preto, é preciso fazer um curso dado por um pedagogo, um profissional na área de saúde. Todos os meus faixas pretas fizeram isso. Tem que fazer um curso de formação de instrutor para ensinar artes marciais. No meu sistema, a pessoa tem de fazer um curso de formação de instrutor. Essa é uma prática que eu abomino e inclusive investigo, porque faço parte do Sindicato dos Professores de Artes Marciais do RS.

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O que disse Giovani Máximo

Eu não dou graduação para ninguém. Se tiver isso aí, pode publicar tudo. Eu me conheço, conheço meu trabalho e meus alunos para se graduar levam um bom tempo. Eu tenho atleta que treina há sete anos e meio e agora fez exame para grau azul com preto. Da minha parte, se houver isso, gostaria até que publicasse. Se tiver algo na mão, que mostre realmente isso. Da minha parte, tenho certeza que não houve. Estou com a consciência tranquila. Para mim, isso é total mentira. Inclusive, gostaria que me mostrasse uma gravação, alguma coisa. Eu jamais vendi graduação para alguém ou negociei.

O que disse Alexandre Carneiro

A minha federação não tem nenhum certificado de grau vermelho com branco. O grau máximo é marrom com branco. Aqui, não acontece negociação de grau. Eu fui três anos seguidos para a Tailândia, lutei mundial, sou nomeado professor lá em técnicas, não botaria meu nome fora. Dou aula por esporte. Sou gerente de estacionamento, segurança de uma família há 14 anos. Arte marcial, para mim, é puro hobby.