Vanda Piñedo, 56, é a única mulher em uma família de cinco filhos. Também foi a primeira na genealogia de origem gaúcha a conseguir fazer faculdade – graças ao trabalho de doméstica, que pagava as altas mensalidades em uma época sem cotas para negros em universidades, e depois aos estágios acumulados que competiam com as aulas à noite.
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Devido à dificuldade de colocar-se profissionalmente enquanto educadora física -principalmente em razão do racismo, como ela mesma conta – recorreu ao concurso público. Hoje é professora da rede estadual de ensino em Santa Catarina. Também dedica boa parte das horas de seu dia à militância negra.
– O negro está sempre à margem do processo, com menos oportunidades, e isso começa com a qualificação, que nos impede de conseguir vagas melhores. Para nós, não é só interessante ascender profissionalmente, mas principalmente lembrar de onde viemos e ter um compromisso no combate ao racismo. Deve ser uma ação coletiva – diz a representa do Movimento Negro Unificado em Florianópolis.
Assim como no restante do Brasil, a população negra em Santa Catarina, que representa somente 15% do todo frente aos mais de 56% no país, tem dificuldade de terminar os estudos, fazer faculdade e conseguir emprego. Da mesma forma, há resistência para negros crescerem profissionalmente.
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– A população brasileira é racista e não quer dividir postos de trabalho com alguém que já escravizou. É uma doença de ignorância – avalia Vanda.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em janeiro de 2015 apontam que mulheres e negros (que incluem pretos e pardos) têm avançado no mercado de trabalho, mas ainda existem os rastros dos preconceitos históricos da sociedade brasileira.
Estudo da Organização das Nações Unidas indica que somente 11% dos jovens negros brasileiros entre 18 e 24 anos estão na universidade. Por outro lado, o rendimento dos trabalhadores de cor preta ou parda, de 2003 para 2014, cresceu 56,3%, enquanto o rendimento dos trabalhadores de cor branca cresceu 30,4%. Mas a pesquisa registrou também que os trabalhadores de cor preta ou parda ganhavam, em média, em 2014, 58% do rendimento recebido pelos trabalhadores de cor branca.
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A remuneração do negro é 25% menor do que a do não-negro na Grande Florianópolis, conforme o Estudo dos Indicadores Socioeconômicos da População Negra da Grande Florianópolis, realizado pela empresa Ceres Inteligência Financeira em março de 2012.
O documento mostra que o rendimento mensal de brancos é sempre maior do que os de negros em todo o país. Em termos reais, a diferença entre o rendimento mensal domiciliar de negros e não-negros está entre R$ 822,67 e R$ 1002,92.
A mesma marginalização acontece com os imigrantes negros. Frisnel Mersier, 47, é haitiano e chegou à capital catarinense em julho. No país de origem, sustentava a esposa e seis filhos como vigilante. Hoje se comunicam pelas redes sociais enquanto ele segura nas mãos uma foto que estampa todos juntos e felizes. Só em novembro ele conseguiu emprego.
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– Ele é uma pessoa super educada. É concentrado no trabalho e focado no que tem que fazer. Não contratei por pena e sim por ser um bom profissional. Porque eles não querem esmola. Querem trabalhar – conta Fernando Just Harger, empresário que empregou Frisnel.

Não à toa o vendedor Paulo Flores, 39, tem o apelido de Negão. Fruto de adoção interracial feita por um casal branco do Rio de Janeiro, ele era uma das poucas crianças negras que estudavam em escolas particulares de Florianópolis. E se destacava.
Graças à qualificação e, principalmente, à base familiar, Paulo formou-se em Direito numa concorrida universidade pública e trabalhou em grandes empresas. Mas é de pessoas que o Negão gosta e, por isso, hoje atua como representante comercial.
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– Meus pais me prepararam muito para suportar as coisas. Eles me diziam: em caso de empate, tu vai perder. Mas nunca me deixaram baixar a cabeça por ser negro. Igualdade a gente sente na pele. Meu caso é exceção. Hoje só dependo de mim, mas isso eu atingi pela condição que meus pais me deram. Se fosse outra trajetória, dificilmente eu estaria aqui – lembra Paulo.
O baiano Yuri Reis, 29, é filho de um militar e de uma dona de casa. Antes de chegar a Santa Catarina, com 14 anos, passou por capitais como Brasília (DF), Rio de Janeiro (RJ) e Recife (PE).
Diferentemente de Paulo, ele estudou em escola pública antes de entrar na faculdade. Prestes a apresentar o trabalho final, ele desistiu do curso tecnólogo em marketing em uma instituição privada. Trabalhou como operador de telemarketing por quatro anos para pagar a faculdade, cuja mensalidade era em partes abatida pela empresa em uma espécie de incentivo. Depois, entrou na área de produtos financeiros em uma loja nacional de departamentos. Atualmente é suporte técnico em uma empresa de tecnologia de Florianópolis e está quase se formando em Gestão da Tecnologia da Informação.
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– Foi no varejo que eu tive a minha primeira ascensão, que eu fui para um cargo tático, e espero continuar crescendo. Trabalhei em empresas que desprezavam qualquer tipo de preconceito. Se a pessoa tivesse capacidade, promoviam mesmo. Antes de dizer que sofro discriminação, prefiro ver se estou fazendo tudo certo mesmo. Não gosto de terceirizar a culpa, apesar de haver esse impulso. Mas não podemos transformar a exceção em regra – diz.
Tanto Paulo quanto Yuri reconhecem seus privilégios e sabem que são exceção no mercado de trabalho catarinense.

Mulheres negras sofrem mais
A florianopolitana Geovana Santos, 34, abriu as portas para a entrada do Ensino Superior em sua família. Filha de uma faxineira e de um pedreiro, estudou a vida toda em escolas públicas. Quatro anos depois de ter se formado no Ensino Médio, começou a trabalhar como faxineira em um shopping. Ficou no cargo por três anos, quando fez um curso técnico e foi promovida à vigilante na mesma empresa.
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O estudo da população negra da Grande Florianópolis comprova a realidade de Geovana: profissões de menor reconhecimento social são em sua maioria ocupadas por negros. Quando negros e brancos têm as mesmas condições para ocupar determinada vaga no mercado de trabalho, normalmente os brancos são privilegiados, conforme o estudo.
Com o que ganhava, conseguiu se formar em Comunicação Social em 2010 – não sem financiar os últimos dois anos de graduação. Depois, encorajou um irmão a estudar Tecnologia da Informação e outra irmã a se especializar em Hotelaria. Com o currículo em mãos atrás de emprego, Geovana conta com tristeza as situações de preconceito passadas.
– Eu chegava, me apresentava, dizia que tinha interesse em uma vaga e nem me deixavam terminar. Diziam que não estavam procurando faxineira. E isso não aconteceu só uma vez. É bastante complicado – desabafa.
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Geovana compõe a marca do IBGE que aponta que mais da metade dos desocupados (desempregados que procuraram emprego, mas não conseguiram colocação) no Brasil em 2014 eram mulheres – cerca de 56,7%. Devido ao desemprego e ao mercado retraído, decidiu mudar de área. Ela agora aguarda o recebimento do diploma de Letras Inglês pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em março de 2016 e já faz planos:
– Penso em dar aula. Já estou fazendo concursos públicos. A expectativa é grande, porque vou depender mais do meu desempenho do que da minha cara, né?
No relatório sobre emprego divulgado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) nesta semana, a análise é de que “a desigualdade no acesso ao mercado de trabalho que afeta os negros é ainda mais intensa quando se trata das mulheres negras”.
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O estudo conclui que “as formas de inserção dos trabalhadores negros ocupados ainda são marcadas pela precariedade quando se constata que, mesmo com o crescimento do emprego mais formalizado, a participação relativa dos negros é maior nas ocupações nas quais prevalece a ausência da proteção previdenciária e, em geral, os direitos trabalhistas são desrespeitados”.
“O capitalismo usa a questão de gênero, a questão racial, pra justificar porque umas pessoas devem ganhar mais que as outras”
Mestre e doutora em História, com dissertação focada na população afro, Janaina Amorim, coordenadora do Grupo de Relações Étnicas Raciais e Gêneros de São José, acredita que a dificuldade de ascensão do negro no mercado de trabalho é um reflexo histórico.
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– O IBGE ainda mostra uma diferença salarial inferior para a população negra, ainda mais delicada para a mulher negra. Na relação de trabalho ela é o sujeito mais prejudicado, mais discriminado. É o sujeito no mercado de trabalho com mais dificuldade de acesso e ascensão.
Para ela, não é à toa que se vejam tantos vigilantes e faxineiras negros.
– São inegavelmente os cargos ocupados pela população negra, que exigem menos escolaridade.
Janaína acredita que o racismo ainda é muito forte e não se pode dizer que estamos numa democracia racial que oferece oportunidades iguais a todos.
– O capitalismo usa a questão de gênero, a questão racial, pra justificar porque umas pessoas devem ganhar mais que as outras – opina. Para Janaína, é necessário muito investimento em política pública e ampliação do acesso à educação para mudar esta realidade.
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– A educação precisa ser melhor para toda a sociedade: aos brancos precisa trabalhar uma perspectiva de que o racismo não é uma ideologia, e a população negra precisa se sentir pertencente de direitos.