Está na pauta de 7 de abril do Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 5.529 que visa revogar um artigo da lei das patentes que favorece a lentidão da análise dos pedidos de exclusividade de fabricação de produtos e inovações. Se o STF revogar o artigo, dará fim a um dispositivo que permite o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) prorrogar essa exclusividade por um prazo de até mais 10 anos, caso o órgão não consiga analisar e aprovar de forma definitiva os pedidos de patente dentro do prazo legal.
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Na prática, esse atraso prejudica diversos setores da economia, principalmente o de medicamentos, porque a indústria nacional fica impedida de produzir as fórmulas de similares e genéricos, que são mais baratos para o consumidor, até que as patentes dos grandes laboratórios expirem definitivamente. O poder público também acumula prejuízos, porque é obrigado a comprar remédios apenas de um único fabricante, sem abrir possibilidade de disputas de preço.
Há uma lista de mais de 70 remédios (veja detalhes mais adiante), entre eles contra câncer (que custa mais de R$ 100 mil), HIV, diabetes e até uma fórmula japonesa estudada como potencialmente eficaz no tratamento da covid-19, que já tiveram o prazo máximo das patentes expirado, mas que ganharam prorrogação do período de exclusividade porque os processos administrativos do INPI ainda não foram concluídos.
Na última semana, o procurador-geral da República, Augusto Aras, apresentou ao STF um pedido de tutela provisória de urgência para suspender imediatamente essa possibilidade de extensão de prazos, argumentando, principalmente, o impacto na saúde pública, agravado pela pandemia de coronavírus. Na petição, Aras utiliza documentos que atestam custos ao poder público, inclusive reportagem do Diário Catarinense para embasar a urgência do pedido.
Vídeo: especialistas explicam por que o atraso na avaliação de patentes afeta a população
Veja o que dizem André Tavares, presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, e Newton Silveira, diretor geral do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual:
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Como funciona a lei brasileira de patentes
No Brasil, o criador de uma invenção ou inovação tem direito exclusivo de explorar os lucros com o produto por até 20 anos, conforme a lei 9.279, de 1996, a Lei de Propriedade Industrial. Esse prazo começa a contar a partir da data de depósito no INPI, ou seja, do pedido oficial ao órgão para que examine a criação e o direito de propriedade temporária. A partir do pedido, o criador já conta com proteção legal da exclusividade, podendo processar um concorrente copie o produto sem consentimento, por exemplo.
O dispositivo que está sendo questionado pelo Ministério Público Federal, autor da ADI 5.529, é o artigo 40 da lei. Caso a conclusão do processo administrativo do INPI demore mais de 10 anos, o prazo de vigência da patente será contado a partir da concessão do direito ao criador. Assim, o período de proteção pode ultrapassar o prazo de 20 anos estabelecido em lei, chegando, em alguns casos, a somar 30 anos de exploração desse direito.
Conforme o MPF, na prática, com esse dispositivo legal, muitas patentes são prorrogadas em função da demora do Inpi em examinar os pedidos. A Procuradoria-Geral da República requer na ADI 5.529 que esse trecho da lei seja declarado inconstitucional. Mesmo assim, o inventor continuará tendo os direitos de exclusividade sobre a invenção preservados, mas o objetivo é que não haja mais o uso do prazo estendido apenas porque o processo administrativo não ocorreu no tempo devido.
É também o que defendem especialistas ouvidos pela reportagem, como André Ramos Tavares, professor de Direito da USP e Presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, e Newton Silveira, diretor geral do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual (veja a entrevista completa com eles no vídeo acima).
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Segundo Newton Silveira, a conclusão da análise dos pedidos de patentes de medicamentos tem levado em torno de 13 anos no Brasil. E uma das razões alegadas pelo INPI para a extensão dos prazos é porque muitos fármacos dependem também do aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
André Tavares complementa que os prazos são muito demorados em relação aos praticados em outros países, como Estados Unidos, Alemanha e Japão, que podem conceder o registro definitivo entre um e três anos em muitos casos, ainda que nesses países haja muito mais pedidos de patente do que no Brasil, por conta da avançada industrialização.
O especialista considera que o artigo 40 da lei das patentes é inconstitucional porque fere diversos direitos garantidos pela Constituição, como o de livre concorrência, por impedir, enquanto existe o direito à patente, que qualquer outro concorra com o inventor; a proteção ao consumidor, porque estender o prazo de exclusividade afeta a disputa de preços e não possibilita escolha ao comprador; e também afeta, segundo ele, o desenvolvimento do país, porque a Constituição afirma que é dever do Estado estimular a ciência e a tecnologia.
O artigo 218 da Constituição fala da ciência e da tecnologia no Brasil, o Estado precisa incentivar o avanço, mas quando se concede uma extensão de patente, bloqueia-se esse avanço, fica-se petrificado nessa tecnologia pelo período de 20 anos, porque geralmente é preciso ter acesso a ela para poder incrementá-la ou produzir novas tecnologias, novas fórmulas, novos medicamentos. André Ramos Tavares, professor de Direito da USP e Presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República

Newton Silveira reforça que o princípio básico de propriedade intelectual é o inciso 29 do artigo 5º da Constituição, que diz que as patentes devem ser concedidas por um tempo limitado, ou seja, um tempo definido.
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O jeito que ficou, o tempo ficou ilimitado. Isso tem acontecido com muitas patentes, em geral as farmacêuticas estrangeiras, porque o pedido delas está demorando em torno de 13 anos no INPI, então ali que se concentra o problema do prazo. Quando é uma coisa mais simples, o INPI procede com facilidade. Agora, a farmacêutica primeiro tem muitos pedidos de patente, o que já encalha no INPI, e depois tem a ver com saúde pública, o que é uma coisa muito importante. Newton Silveira, diretor geral do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual
Consequências para produção de remédios mais baratos
Na avaliação de Reginaldo Arcuri, presidente do Grupo FarmaBrasil, que representa as maiores fabricantes de medicamentos genéricos do país, o parágrafo 40 da lei das patentes permite que, na prática, diante da impossibilidade de julgar os processos no prazo, o órgão federal prolongue a vigência das patentes para além do esperado e do praticado em outros países.
Segundo ele, o impacto no setor farmacêutico é grande, por exemplo, porque impossibilita que uma fórmula de remédio de marca possa ser produzida na versão genérica por outros laboratórios.
– Enquanto se tem esses medicamentos protegidos por patentes, é o detentor da patente que estabelece o preço. Então o governo tem que comprar de acordo com o preço que ele negocia com o detentor da patente. Mas não tem concorrentes. Quando a patente cai, começa a ter concorrência – defendeu Arcuri, em entrevista ao Diário Catarinense em julho de 2020.
Além disso, a insegurança jurídica atrapalha o planejamento do setor e gera prejuízos. As indústrias se programam pelo calendário da vigência das patentes a fim de se preparar para a produção de novas fórmulas tão logo a exclusividade deixe de vigorar. Mas corriqueiramente são surpreendidas pela extensão da proteção por mais alguns anos.
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Remédios contra câncer, HIV, diabetes e até fórmula estudada para tratar a covid-19 são impactados
Levantamento da Câmara dos Deputados apontou que o medicamento contra o câncer Avastin, por exemplo, que teria a patente extinta em 2018, teve prorrogação da proteção até 2023, devido aos atrasos na conclusão do processo administrativo do Inpi.
A fórmula está longe de ser a única. Na lista de medicamentos que tiveram prorrogação de prazo beneficiados pelo artigo 40 estão pelo menos 74 remédios. Dentre eles há fórmulas para tratamento contra HIV, artrite reumatóide, diabetes, hepatites e linfomas. Pelo menos 20 deles são remédios contra câncer.
São medicamentos que custam de R$ 39 a R$ 113 mil, adquiridos na maior parte pela rede pública de saúde. Há também uma fórmula que cientistas estudam para avaliar o potencial contra a covid-19, o favipiravir, fabricado exclusivamente por um laboratório japonês, cuja patente também já deveria ter expirado no Brasil, mas foi estendida até 2023.
Um estudo elaborado pela professora Julia Paranhos, do Grupo de Economia da Inovação, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, identificou que entre 2014 e 2018 o governo federal gastou R$ 10,6 bilhões, ou cerca de R$ 1,9 bilhão por ano, com apenas nove medicamentos que teriam a patente expirada entre 2010 e 2019, mas que tiveram prorrogações de até 8 anos por parte do Inpi.
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Pelos cálculos dos pesquisadores, se fossem substituídos por genéricos ou biossimilares, poderia gerar economia aos cofres públicos de até 55% no cenário mais drástico.

Setor de telecomunicações também é afetado
Newton Silveira e André Ramos Tavares ressaltam também que o artigo 40 representa um atraso para o desenvolvimento econômico do país, porque desestimula ou dificulta o avanço de pesquisas e aprimoramentos de tecnologias já existentes. Como resultado, o país perde capacidade competitiva, já que em países desenvolvidos o tempo de resposta de um pedido de patente pode sair entre 1 e 3 anos, segundo Tavares.
Depois do setor de saúde, o de telecomunicações é outro que padece com a extensão do prazo das patentes devido à demora da análise do INPI. Isso porque, segundo Tavares, é uma área onde a tecnologia muda rapidamente e depende de aprimoramentos de invenções que já estão no mercado. Os atrasos no setor afetam o avanço de tecnologias como Internet das Coisas e implantação de novas soluções de conexões mais rápidas.
INPI afirma que tem reduzido a fila de pedidos em espera
O INPI é uma autarquia ligada à Secretaria Especial de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia. Procurado pela reportagem, o INPI afirma, por meio de nota, que “como órgão do Executivo, apenas aplica o determinado em lei”. A autarquia argumenta que já tem feito esforços para diminuir os atrasos e a fila de pedidos em espera por análise, chamada no jargão de “backlog”.
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Desde 2019, foi implantando o Plano de Combate ao Backlog de Patentes, com objetivo de diminuir em dois anos a fila de espera por análises. Conforme a atualização mais recente das estatísticas do plano, há pouco mais de 66 mil pedidos de análise pendentes no INPI, dos quais 25,6 mil são da área química, 15 mil de engenharia mecânica, 12,3 mil de engenharia elétrica e 13 mil de instrumentos diversos e outros setores.
“O INPI tem envidado grandes esforços para reduzir a incidência no parágrafo único do artigo 40 (da lei de Propriedade Industrial). Esta incidência, que em 2019 estava em 44,8%, foi reduzida para 26,8% das patentes concedidas em 2020. A previsão é que, em 2021, esta incidência seja de 22% e, em 2022, teremos apenas incidências residuais”, conclui a nota do INPI.
A reportagem também procurou a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), que representa a maioria dos grandes laboratórios que fabricam remédios de referência no país, mas até a publicação desta reportagem não houve retorno.