Além de Marta, as atletas do time feminino do Criciúma têm o nome das outras jogadoras da Seleção na ponta da língua. A cada lance, um comentário, algumas unhas roídas, muita concentração e, principalmente, empolgação. Ver pela TV aberta a Seleção Feminina é um estímulo para quem está começando no mundo da bola, uma mostra de que é possível, sim, chegar lá.

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Na tarde da quinta-feira, as meninas se reuniram depois do treino para acompanhar o segundo jogo da Seleção no Mundial da França. O Brasil saiu na frente com Marta e Cristiane, mas deixou a Austrália virar e terminar o jogo em 3 a 2. Mesmo com a derrota brasileira, o apoio às atletas continuou firme.

– Achei incrível, a gente só via homens na TV jogando bola. Hoje em dia as meninas estão crescendo, cada time profissional tem o seu – comenta a lateral-esquerda Maria Eduarda da Silva, 14 anos.

Natural de Porto Alegre, ela chegou ao clube catarinense há cinco meses, divide alojamento com mais 15 meninas, e enxerga no esporte uma oportunidade de dar uma vida mais confortável para os pais.

Por isso o empenho precisa ser redobrado para conquistar um lugar ao sol.

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– Não dá para dar “migué” no treino, quando se faz isso, é um dia a mais distante do objetivo. Coloquei isso na cabeça: quanto mais eu me dedicar, é um dia mais próximo de realizar – diz.

Estudos e parcerias

A iniciativa do projeto de futebol feminino de campo e de futsal é mantida pela Escola Superior de Criciúma (Esucri) e pela Fundação Municipal de Esporte (FME).

Ao Criciúma Esporte Clube, cabe o papel de disponibilizar espaço para treinamento, moradia e parte da alimentação das atletas.

– Dentro de uma expectativa do nosso orçamento, o presidente Jaime Dal Farra tem incentivado. Tem as bolsas da faculdade, do município, mas o clube está sempre buscando parceiros para fomentar ainda mais o futebol feminino – explica o coordenador das categorias de base do Criciúma, Serginho Lopes.

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Ao todo, cerca de 60 meninas de 13 a 23 anos treinam diariamente, além do projeto de escolinha que também contempla o futebol feminino. A partir do ano que vem, quando passa a ser obrigatório que os times de Série B também tenham equipe profissional de feminino, a expectativa da treinadora Sabrina Cassol é de crescimento.

– É positivo ver toda essa mobilização em torno da Copa, mas a gente espera que continue depois também. Já tivemos altos e baixos, outros momentos, em que a competição passou e o assunto morreu. É preciso um trabalho constante, de força na base, para criar um bom time profissional – analisa.

Falta de estrutura

Longe de casa, a maioria das meninas tem o apoio dos familiares para buscar uma carreira no futebol. Joyce Laís da Silva Ramos, 22 anos, está há três anos fora de Cuiabá, onde moram a mãe, o padrasto e os irmãos. Ela começou a jogar no Mato Grosso há quase 10 anos, sabe das dificuldades de despontar no esporte, e por isso aproveita a oportunidade para trilhar um caminho alternativo. Se não der certo como atleta, quer ter sucesso como profissional de Educação Física.

Ela vai para o quarto semestre na Esucri, e atua como estagiária em escolas municipais. Quando mais jovem, sonhava em jogar na Seleção, ganhar milhões de reais e ser reconhecida no mundo todo, mas os anos de estrada ensinaram que o caminho é mais difícil do que parece.

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– Por mim, quero jogar bola até quando as pernas aguentarem, eu adoro, mas sei que não é fácil. Temos que aproveitar as oportunidades, como estudar, pois, caso não deslanche no futebol, tem uma profissão para seguir – pondera.

Dificuldades nos treinos

Os trabalhos das meninas no Centro de Treinamento Antenor Angeloni começaram em 2017, mas ainda há muito o que melhorar. Horários para a utilização de academia, acesso à fisioterapia, entre outros, ainda são em menor escala do que os oferecidos à base do masculino. O campo também tem menos estrutura, sem redes nas traves e gramado castigado.

– Vai ter que ter investimento, ou não tem como, não vai decolar. Não tem nenhum time hoje no Brasil que se iguala estrutura, oportunidades, entre feminino e masculino, tem bons exemplos como Corinthians, Santos, São Paulo, mas ainda é preciso evoluir – projeta a treinadora Sabrina Cassol.

treino criciúma
(Foto: Guilherme Hahn / Especial)

Mais espaço no calendário

O gerente de competições da Federação Catarinense de Futebol (FCF), Fábio Nogueira, avalia que uma mudança de mentalidade sobre o futebol feminino está em curso. Ele analisa que esse processo é lento, e que as dificuldades de financiamento ainda são grandes, mas vê com otimismo o crescimento da modalidade no Estado.

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Entre as iniciativas para dar mais espaço ao esporte, está a criação de um campeonato estadual sub-17. Nogueira adianta que a ideia da FCF é iniciar a competição ainda este ano, e ressalta que ela suprirá um vácuo na formação das atletas de SC.

– Dois anos atrás, nós propomos a inclusão de categorias femininas nos Jogos Abertos de Santa Catarina e nos Joguinhos. Isso foi positivo para dar mais espaço e abrir margem a mais investimentos nas prefeituras. Agora, chegou a vez de iniciarmos o nosso sub-17 – explica o gerente de competições.

Campeonato Catarinense ainda tem pouca adesão

Confirmado, o estadual sub-17 se somará ao Campeonato Catarinense Feminino no calendário oficial da FCF. A competição na modalidade adulta já é realizada desde 2007, mas ainda conta com poucos participantes. A edição do ano passado, por exemplo, teve apenas quatro equipes: Avaí Kindermann, Chapecoense, Criciúma e Marcílio Dias.

Para o campeonato deste ano, a federação espera mais clubes. De acordo com Fábio Nogueira, os quatro times de 2018 já estão confirmados e outros dois podem se juntar à competição de 2019, prevista para ocorrer entre os meses de setembro e dezembro.

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O campeonato representa uma oportunidade importante para as jogadoras de futebol em Santa Catarina. Conforme o Departamento de Registro e Transferências da FCF, no ano passado 105 atletas mulheres foram inscritas para o Estadual.

Além disso, a competição também abre portas para os clubes que almejam crescer, dando uma vaga aos campões no Brasileiro A2, a segunda divisão do campeonato nacional feminino.

Kindermann: exceção da regra

Enquanto o futebol feminino caminha a passos lentos, o Avaí Kindermann é um ponto fora da curva em Santa Catarina.

A equipe da pequena Caçador, no Oeste, não só mantém a hegemonia absoluta nos gramados do Estado – tendo sido campeã em 10 das 11 edições do Catarinense – como desponta entre as melhores do país.

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Prova da importância que o time catarinense vem ganhando está na Seleção Brasileira que disputa a Copa do Mundo de Futebol Feminino: a goleira do clube, Bárbara, é a atual titular do Brasil na França, e outras três jogadoras do elenco já passaram pela equipe de Caçador, a também goleira Letícia, a zagueira Daiane e a lateral Camilinha.

– A gente está se destacando, porque a gente investe – comenta Salésio Kindermann, presidente e fundador do time.

Aposta para sucesso

Segundo o mandatário, hoje o elenco conta com 28 atletas contratadas, e tem uma folha salarial que soma R$ 120 mil mensais. As jogadoras tem a oportunidade de cursar uma faculdade, já que o clube tem parceria com uma instituição de ensino, além de ter à disposição uma estrutura “que muitos times de futebol masculino não tem”, frisa.

É com esse investimento que o mandatário espera ver o time alcançar o título inédito do Brasileiro neste ano, depois de bater na trave e ficar com o vice em 2014. No momento, a equipe é a quarta colocada. A trajetória de sucesso inclui ainda uma Copa do Brasil, conquistada em 2015.

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– Comecei a investir no feminino em 2004, primeiro com o futsal, e em 2008 migramos para o futebol. Foi meio por acaso. A gente tinha poucas chances de estar entre os grandes no futebol masculino. Então decidimos apostar no feminino – relembra Salésio, sobre os primeiros passos do time.

comemoração Avaí Kindermann
(Foto: Lucas Gabriel Cardoso / Avaí Kindermann)

Parceria com o Avaí

Até o começo de 2019, a equipe de Caçador levava apenas o sobrenome do fundador: Kindermann, quando o Avaí passou a ser parceiro. Segundo o presidente, a união ao clube de Florianópolis deu mais visibilidade à equipe, além da possibilidade de mais investimentos.

– Hoje nós já temos uma estrutura melhor, de apoio, de projetos, e a própria CBF também está ajudando os clubes. Mas ainda assim manter o futebol feminino é bastante difícil. Sempre precisei correr muito atrás – comenta Salésio.

Sonhos de um futuro melhor

Treinos em campos emprestados pelas comunidades, preparação em academia particular por meio de parceria, falta de alguns profissionais, diretores fazendo múltiplas funções e atletas em alojamentos modestos, sonhando com um futuro melhor.

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Na Chapecoense, assim como em grande parte dos clubes brasileiros, a realidade do futebol feminino demonstra que o trabalho está apenas no começo.

Os jogos do Campeonato Brasileiro Feminino da Série A2, disputado pela Chape, são mandados em Xanxerê, no Estádio Josué Annonni – assim como já fez o time masculino antes da ascensão. A Arena Condá, só para os homens, assim como o Centro de Treinamento Água Amarela.

alojamento chape
(Foto: Tarla Wolski / Especial)

Mas, para as jogadoras, a situação já foi bem mais difícil. Neste ano, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) estabeleceu como regra que todos os times da Série A tenham também equipes femininas, no adulto e na base. Com isso, a categoria tem tido mais atenção e chances de crescer.

– Quando joguei no Foz do Iguaçu, tinha poucas equipes disputando o Campeonato Brasileiro. Isso que era só uma série. Agora está melhor. Mas acho que falta uma renovação na Seleção Brasileira – opina a volante Jaqueline Soares, 21 anos, que já foi campeã Sul-Americana Sub-20 pela seleção de base do futsal.

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A propósito, Jaqueline, que é natural de Chapecó, confessa que prefere jogar nas quadras que nos campos, mas escolheu o futebol porque a modalidade tem salários melhores. Enquanto uma boa jogadora de futsal ganha em média R$ 800 por mês, no futebol esse salário chega a cerca de R$ 1,5 mil. Valor ainda distante das cifras milionárias pagas aos homens.

Motivação para seguir

A goleira Camila, de São Luís, no Maranhão, está há cinco meses em Chapecó. Ela conta que só veio após completar 18 anos, pois antes disso seu pai, José Vieira, 61 anos, não a deixava.

A saudade de casa é grande, mas ela busca motivação no próprio pai, a quem deseja ajudar. Ele está desempregado.

– Já pensei várias vezes em desistir, tenho muita saudade, mas preciso ser persistente, pois somente assim eu vou poder ajudar ele de alguma forma – comenta.

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A jogadora lembra que começou no futebol inspirada pela meia Formiga, da Seleção Brasileira, mas acabou se tornando goleira quando pegou um pênalti ao substituir uma colega de time que se machucou, quando atuava pelo Sampaio Corrêa (MA).

Natural de Praia Norte, no Tocantins, a lateral-esquerda Gissele Mariano, 17 anos, conta que também busca motivação na figura de seu pai, que mantinha a escolinha onde ela começou a jogar. Desde a morte dele, em 2013, continuar no futebol é uma forma de homenageá-lo. Hoje, ela revela otimismo e diz que sonha com um lugar entre as melhores.

– Acho que o futebol feminino melhorou muito e a gente deve isso às atletas da atual Seleção. Elas fizeram história. A gente tem que dar continuidade – diz.