Entre março de 2013 e dezembro de 2014, um grupo instituído pelo governo do Estado e com membros indicados por entidades como o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), a Assembleia Legislativa (Alesc) e a Ordem dos Advogados do Brasil de SC (OAB-SC) resgatou a análise de desaparecimentos, morte e torturas ocorridas durante o regime militar no território de Santa Catarina.

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Era a Comissão Estadual da Verdade. Na esteira do trabalho feito pela comissão nacional na mesma época, que buscava elucidar os crimes cometidos durante o período de regime militar no Brasil, o grupo pesquisou documentos, colheu depoimentos e elaborou um relatório com as violações cometidas durante os anos de chumbo no território catarinense.

No relatório final, a comissão pontou que o Estado teve 10 catarinenses assassinados – três dessas vítimas continuavam desaparecidas até a elaboração do documento. Uma dessas mortes, a do ex-prefeito de Balneário Camboriú, Higino Pio, foi a única ocorrida no território do Estado, em Florianópolis.

O advogado Anselmo Machado foi o coordenador da Comissão Estadual da Verdade. Filho de preso político da ditadura e ex-militante, ele comandou os trabalhos ouvindo familiares de jovens presos, desaparecidos e mortos durante o período militar, que teve seus anos mais severos após a instituição do AI-5, em 1968.

Esta semana, a afirmação do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), de que um novo AI-5 poderia ser uma resposta do governo “se a esquerda radicalizar”, entidades e políticos de todo o país reagiram em defesa da democracia.

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Procurado pela reportagem, o advogado que acompanhou de perto as violações de direitos do período de regime militar considerou a fala do deputado e filho do presidente Jair Bolsonaro como “um absurdo” e algo “típico de quem desconhece o que aconteceu”. Confira abaixo a entrevista:

Como você, que acompanhou os fatos ocorridos durante o regime militar, avaliou a afirmação do deputado Eduardo Bolsonaro, de que um novo AI-5 poderia ser uma resposta “se a esquerda radicalizar demais”?

A manifestação do deputado é típica de uma pessoa que não conhece exatamente o que aconteceu naquele momento. Um momento histórico da fase do Brasil. Está comprovado, atestado, e essa foi a função da Comissão da Verdade: investigar a fundo o que aconteceu naquele período, que foi período de exceção. Quando se colocou de lado a Constituição e vivemos um período ditatorial, sob o manto de não entregar o país ao comunismo, e o país estaria muito longe de ser comunista. As reformas que o governo queria eram as chamadas reformas de base, que realmente precisaria para que o país crescesse. Mas isso é do ponto de vista ideológico, vamos dizer assim.

Hoje, embora o país tenha vivido momento de redemocratização, período relativamente curto, de 31 anos sob a égide da nova Constituição, esse novo modelo de Estado, que foi construído para que isso não acontecesse mais. Para que o povo pudesse ser devidamente representado.

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O deputado eleito, filho do presidente, dizer que se a esquerda radicalizar há necessidade de a edição de novo AI-5 é de um absurdo tamanho. É de alguém que não conhece e não respeita a carta de 88, que é a Constituição Cidadã. Causa uma surpresa muito grande.

Ou foi por desconhecimento ou foi realmente uma afronta aos poderes constituídos.

O que representou a instituição do AI-5?

Há um reconhecimento histórico de que nesse período todo houve diversas violações aos direitos humanos. Isso vai da liberdade de imprensa, vai contra o direito das pessoas que eram defendidas pelos seus advogados, tivemos juízes afastados, desembargadores cassados, governadores e vice-governadores afastados, deputados estaduais cassados. Foi uma barbárie. Não respeitar o poder do povo é negócio muito complicado. A gente vai rasgar a Constituição e seja o que Deus quiser.

Uma das grandes discussões da Comissão da Verdade foi de que a discussão da tortura, que volta e meia vêm à tona nos discursos da direita, tentando legitimar, isso é algo reprovado no mundo inteiro. E no Brasil, isso é muito presente, ainda, por incrível que pareça.

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O Estado ainda recorre inúmeras vezes à tortura. Com frequência a imprensa apura diversos abusos por conta de autoridades policiais e autoridades constituídas. Não apenas física, mas a tortura psicológica, a tortura moral. Isso nos preocupa bastante.

O país se esqueceu do que aquele período histórico representou?

O lema da Comissão da Verdade era “Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”. Isso era algo presente. Tivemos cinco diretrizes na Comissão Estadual da Verdade. Uma delas é a inclusão nos cursos de História, passar para toda a formação acadêmica, esse período negro que não está efetivamente colocado dentro do ponto de vista histórico nos livros acadêmicos, principalmente no ensino médio. Para que as pessoas entendam a importância histórica que isso teve para o país. Outra diretriz foi para a Alesc devolver os mandatos cassados, o que já aconteceu.

Para você, o que significa a afirmação do deputado ao evocar um período como aquele?

Além de ser um absurdo, são palavras de alguém que desconhece a história, o período, ou de um sádico louco. Porque só um sádico para querer a volta daquilo. Só uma pessoa que tem perturbação mental para dizer que aquele momento é válido para o país.

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