Na descida de um morro sinuoso de estrada de chão na região da Vila Itoupava, em Blumenau, um portão aberto sustenta uma placa que avisa, em tom de apelo: “abandonar animais é crime. Denuncie“. Basta passar por ele para ouvir os latidos de alerta e o frisson que se arma nos 28 canis distribuídos em volta de uma lagoa, à direita de quem entra no terreno pelo acesso de brita. Todos disputam espaço para encostar os focinhos nos losangos da tela de arame e ver quem chega ao lugar que passou a ser o lar deles depois de passarem justamente por histórias de abandono ou maus-tratos: o Sítio Dona Lúcia.
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É a própria Lúcia Westphal, 58 anos, cabelos castanhos amarrados, as mangas da blusa azul xadrez dobradas, quem vem receber na entrada da casa onde trabalham os funcionários do lugar. Ela conta que tudo começou 33 anos atrás, quando acolheu uma gata abandonada. Com o tempo, passou a ajudar mais animais que encontrava pelo caminho amparando-os em galpões e lares temporários. Hoje, é responsável pelo maior abrigo da cidade, que soma cerca de 650 cachorros, 200 gatos e até um cavalo. Valente, cerca de 22 anos, foi encontrado em uma cidade do Litoral puxando uma carroça mesmo com uma pata quebrada. A fratura não tem cura, mas ele recebe acompanhamento veterinário e consegue caminhar com alguma desenvoltura pelo pasto. Interage com os cães e come ração, embora adore uma cenoura ou uma maçã.
Na garagem dois funcionários banham e tosam cães de médio e pequeno porte com a saúde em dia, que no fim de semana serão levados para eventos e feirinhas de adoções organizadas pelos cerca de 50 voluntários do Sítio Dona Lúcia. Nesses locais é que reside a esperança de que os caminhos dos bichinhos se cruzem com o de famílias capazes de retribuir o afeto e o companheirismo que oferecem sem pedir recompensa. Enquanto rola a sessão de tosa, Lúcia dribla os cachorros mais apegados que lhe passam por entre as pernas para caminhar e apresentar o sítio — e seus personagens. Os primeiros são os gatos. Os ainda não castrados ficam reclusos em uma ala separada, mas os já prevenidos contra a superpopulação povoam o teto no que parece um aprazível banho de sol.
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“Aqui mora um cão feliz”, informa a frase talhada na madeira de uma placa em frente à porta que dá acesso à sala de estar tomada por eles. Felizes como Faísca e Fumaça, uma dupla dinâmica de vira-latinhas pretos com energia de desenho animado e capaz de travessuras de montão. No oposto da empolgação dos dois, o pequeno e um tanto folgado Canisso repousa encostado na grande e aparentemente confortável Laica — “é assim na maioria dos dias”, alerta Lúcia. Opa Tijucas, um cão que lembra um dogue alemão de mais ou menos 18 anos é o cão mais velho do espaço e observa tudo com a desconfiança dos mais experientes. Em uma mala transformada em caminha, Pretinha, uma poodle de 15 anos e já com a saúde debilitada, descansa na companhia inseparável de Duque, que não arreda pata e oferece seus pelos brancos encaracolados para aquecer a amiguinha na dificuldade, parecendo entender que um abandono poderia potencializar a dor.
“Isso aqui é fruto da ignorância humana”
Os animais têm água e comida à vontade, dentro e fora do canil. Todos têm prontuários com registros das vacinas, remédios e atendimentos feitos. A afeição é tanta que dona Lúcia admite que às vezes não sabe dizer não. Essa postura desperta críticas de alguns ativistas. Como de costume, essa virtude também acaba sendo aproveitada maldosamente por pessoas que querem apenas se livrar de seus animais como se fossem uma mobília antiga.
— Já saí para buscar dois e voltei com 24 — conta, não muito orgulhosa, mas reconhecendo que nesses casos a escolha é entre acolher ou se omitir perante mais um abandono iminente.
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Voluntários e outros ativistas da causa animal também derrubam um argumento clássico dos críticos de plantão: a velha dicotomia entre ajudar animais versus ajudar crianças carentes. Isso porque em visitas a comunidades pobres, é comum que descubram histórias em que não apenas os cães são vítimas, mas também os moradores, com problemas financeiros, falta de emprego, doenças. Nesses casos, os voluntários acabam provando aos faladores que é possível fazer as duas coisas: ajudar os cachorros e também famílias em dificuldade.
Para dona Lúcia, o maior maltrato é o abandono. Ela diz ter sentimento por todos os seres do lugar, mas admite que em condições ideais não gostaria de ter o abrigo:
— Isso aqui é um fruto da ignorância humana. Não precisaria existir se as pessoas não fossem tão mal-educadas. Deveria servir apenas para o animal de uma pessoa que morreu ou algo assim.
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:: Voluntários auxiliam no trabalho de resgate e cuidados com animais
Lúcia tem duas esperanças para que a sensação de enxugar gelo diminua. A primeira é uma política clara de castração, algo fundamental para evitar o abandono e que precisaria de mais investimento. Mas a maior expectativa está nas mãos dos mais jovens.
— Essa geração mais nova é mais sentimental e tem mais ligação com o bem-estar animal — crê.
COMO AJUDAR?
Hoje são cerca de 850 animais abrigados no Sítio Dona Lúcia, cerca de 6 toneladas ao mês de ração. Para ajudar, é possível apadrinhar os animais com doações mensais e também únicas por cartão de crédito, depósito bancário ou pessoalmente. Também são aceitas doações de remédios, casinhas, caminhas, caixas de transporte, cobertores, jornal, toalhas, panos, algodão, gaze e tudo o que servir para cães e gatos.
Depósito em conta bancária
Razão Social: Associação Sítio Dona Lúcia
Banco 085 – Viacredi
Agência 0101
Conta 388.269-1
CNPJ: 23.588.017/0001-07