Há pouco mais de um mês, Mohamed Samer Kalsoum, 43, pegou pelo braço a esposa, Rania Sabbagh, 34, e os dois filhos de 9 e 12 anos, Ali e Mierna Kalsoum. Eles saíram de Damasco, capital da Síria, e foram até Harasta – cidade ao Norte do país do Oriente Médio. As condições encontradas no novo distrito foram as mesmas da cidade natal: destruição pela guerra.
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Antes, também tentaram ir para Beirute, no Líbano, onde enfrentaram muita burocracia. Não suportavam mais o medo de estar no país de origem, que vive um conflito desde a Primavera Árabe, em 2013. No desespero, Mohamed decidiu vender tudo o que eles tinham, deixar familiares para trás, abandonar empregos e escola e vir para o Brasil. Hoje estão em Florianópolis, distante cerca de 10 mil quilômetros.
– Os momentos de espera pelo visto foram os piores. Eu tinha medo de que fôssemos morrer, porque vi familiares sendo assassinados a sangue frio do meu lado em uma blitz. Assim que chegou [o visto], fomos para o aeroporto. Agora é reconstruir a vida aqui. Sou alfaiate e pretendo abrir meu próprio negócio junto com um amigo que mora em Florianópolis há um ano e meio – disse Mohamed, que não sabe se a casa ainda está de pé em Damasco.
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80 refugiados
Nas contas do sheik Amin Al Karan, que cuida do Centro Islâmico da Capital, já são 80 refugiados sírios em Florianópolis e estima-se que outras cidades catarinenses, como Criciúma, também estejam recebendo esses imigrantes.
Mas não há um número oficial por cidade ou Estado, porque a partir do momento em que o visto é concedido, há livre passagem pelo país, conforme explica o Ministério da Justiça. Só se sabe por meio de dados do Comitê Nacional para Refugiados (Conare) que 2.077 sírios conseguiram visto brasileiro desde que a população de países do Oriente Médio revoltou-se contra os governos autoritários, há dois anos.
– A maioria tem um conhecido, amigo ou familiar por aqui e acaba vindo. Chegando aqui, as dificuldades são muitas, porque o governo só está permitindo a entrada, e não oferecendo muitas condições de permanecer. Eles acabam contando com o apoio de outros sírios já estabelecidos aqui, porque as dificuldades são muitas: língua, documentos, aluguel de imóveis, emprego… – enumera Al Karan.
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Mas para Rania, essa segunda chance já vale ouro.
– Nós somos um povo vivo, em movimento, e a História prova isso. Não perdemos o ânimo para recomeçar – garante a esposa de Mohamed.

Rania reza acompanhada da filha Mierna, mas separada dos homens conforme manda a religião na mesquita no Centro de Florianópolis. Foto: Betina Humeres/Agência RBS
Mais gente chegando
A Polícia Federal de Santa Catarina conta que 34 refugiados sírios fizeram acompanhamento da concessão de refúgio humanitário no posto de Florianópolis até agosto. Durante todo o ano passado, outros 37 imigrantes da mesma nacionalidade estiveram em contato com a PF para prosseguir o pedido, que é feito após o recebimento do Registro Nacional de Estrangeiro.
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– Florianópolis não é a porta de entrada dos sírios no Brasil. Mas o número de refugiados dessa nacionalidade que vem acompanhar o pedido de refúgio aqui vem aumentando – avalia o delegado da PF, Luiz Carlos Korff Rosa Filho.
Mahmud Darwish, 26, é prova dessa expectativa. Ele chegou sozinho a Florianópolis há menos de uma semana. Antes, também tentou a vida na Turquia, mas desistiu pelo preconceito local com o povo sírio.
– Eu sou um jovem. E, se você é jovem na Síria, fica neutro. Por consequência, se você não carrega uma arma, é humilhado dos dois lados [milícia e governo]. E eu não quero isso. Mas não sou uma pessoa que se joga no mar para morrer afogado – lembra o refugiado, que era cabeleireiro e pretende constituir carreira e família em solo catarinense. Ele lamenta que tantos imigrantes estejam morrendo nas travessias no Mar Mediterrâneo em direção à Europa, a exemplo do menino Aylan Kurdi.
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O comerciante Ibrahim Soumaille, 51, incentiva Mahmud depois da oração das 16h na mesquita. O libanês veio para Florianópolis com 18 anos, também fugido de uma guerra civil.
– Sei o que eles estão passando e não é fácil. Mas vai melhorar aqui. Lá, sem condições. Acompanho com dor no coração – diz o empreendedor.
Sem políticas públicas, grupos é que dão apoio
As secretarias municipal e estadual de Assistência Social não possuem programas de atendimento específicos para refugiados sírios. A expectativa é que o cenário mude daqui um mês e meio, quando chega ao fim a tramitação de projetos especiais na Assembleia Legislativa.
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Devido à desassistência, outras instituições acabam preenchendo a lacuna no acolhimento aos imigrantes. A Arquidiocese de Florianópolis, por exemplo, criou o Grupo de Apoio aos Migrantes e Refugiados em abril de 2014. A iniciativa une mais de 15 instituições que trabalham com migrações. O oferecimento de curso de língua portuguesa para estrangeiros é um exemplo do resultado desse trabalho.
– A partir deste grupo, verificou-se a necessidade do poder público especializar-se nesta área, criando um comitê intersetorial sobre o tema, envolvendo diversas secretarias municipais a fim de atender cada vez melhor essa nova realidade _ explica em nota o sociólogo e Secretário Executivo da Ação Social da Arquidiocese de Florianópolis, Fernando Batista.
A Pastoral do Migrante, na Paróquia da Prainha, é outra instituição que realiza trabalho semelhante. Segundo a antropóloga e assistente social da Cáritas, ONG que atua com Direitos Humanos, Tamajara da Silva, o espaço chega a receber 30 imigrantes de 32 nacionalidades por dia. A última família síria foi recebida há dois meses.
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– Em uma parceria com universidade e outros órgãos, realizamos todo o tipo de serviço social, econômico, cultural e jurídico. Ajudamos na emissão de documentos, graças ao apoio de um advogado, e também auxiliamos na busca por empregos – exemplifica.

Sírios e libaneses em Florianópolis não deixam de realizar as orações do dia. Foto: Betina Humeres/Agência RBS
É bom para o nosso país
Para a pesquisadora do Observatório de Migrações da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Samira Moratti Frazão, os sírios fazem parte de uma onda de imigração que se intensificou no Brasil nos últimos 20 anos.
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– A partir de 2000, quando o país estava em pleno crescimento, começamos a receber muitos povos, que ainda vêm apesar da crise. A flexibilização das leis migratórias também contribuiu para esse cenário. Isso é muito positivo, porque além da diversidade cultural, a vinda de migrantes faz a economia girar, uma vez que eles ocupam postos de trabalho menos complexos mesmo a maioria tendo ensino superior, como é o caso dos sírios – avalia.
– Além da questão humanitária, o que já seria motivo suficiente para facilitar a acolhida dessas pessoas, o Brasil está cumprindo com seus compromissos internacionais e sua legislação nacional ao dar refúgio para quem necessita. Assim como nós buscamos melhores condições de vida, essas pessoas têm na imigração a única possibilidade de viver, elas foram obrigadas a sair de seus países – complementa o presidente do Conare, Beto Vasconcelos, à agência Estado.
Brasil é o mais receptivo
Em setembro de 2013, o Brasil foi o primeiro país da América Latina a oferecer asilo humanitário aos sírios. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) classifica o Brasil como o mais receptivo país latino-americano aos sírios – e um dos principais no mundo.
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É o país com maior número de refugiados reconhecidos no Brasil, graças a uma normativa do Conare publicada há dois anos que facilitou a concessão de vistos a imigrantes vindos desse país. Brasil já concedeu mais asilo para sírios do que alguns países europeus: são 2.077 contra 1.355 na Espanha, 1.055 na Itália e 15 em Portugal, segundo a Eurostat.
Aqui, com apoio do Acnur e de entidades, os refugiados têm aulas de português. Os atendimentos se concentram principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Em São Paulo, a comunidade síria é forte. Um grupo de empresários ajuda a acolhê-los. Muitos têm economias (dinheiro para pagar a viagem, por exemplo) e grau mais elevado de instrução – são médicos, administradores, por exemplo.
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Perfil dos refugiados no Brasil
70% são homens
65,6% têm idades entre 18 e 39 anos
19% menores de 17 anos
15,4% Outras faixas de idade
Fonte: Conare