Toda manhã, João tem um ritual.
O que vive no campo salta da cama tão logo surge a primeira luz do dia e caminha com determinação para o estábulo, ao redor do qual já o espera a vaca malhada (ou uma de suas muitas descendentes).
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O frescor da noite que acaba de amanhecer é o momento propício para a ordenha, um compromisso que este João herdou do pai no princípio da juventude e até já perdeu as contas do número de anos que cumpre com zelo e maestria. É assim que ele proporciona à família o alimento inicial de uma longa jornada, que se estenderá até desaparecerem os últimos raios da luz do dia.
Homônimo do homem do campo que repete detalhe por detalhe a mesma rotina sete dias por semana, outro João, este habitante de cidade grande, também dedica sua vida à arte da ordenha. Seu produto, no entanto, é um pouco diferente: em vez de extrair diariamente litros de leite, como faz João do Campo, João Urbano, com a mesma periodicidade (mas em horários bastante diversos), verte, em sua ordenha, uma avalanche de palavras. Que se combinam em frases e vão ganhando um (ou vários) sentidos. E também saciam a fome, só que do espírito.
A ordenha tem técnicas que afetam a qualidade do produto e se aplicam tanto às atividades do João rural quanto ao da cidade. Um bom exemplo são os cuidados que se deve ter com o produto inicial (seja leite ou palavras). Ele deve ser cuidadosamente analisado para definir a eventual necessidade de descarte – pois bem sabe quem domina a prática da ordenha, nem sempre as primeiras canecas de leite (ou os primeiros agrupamentos de palavras) reúnem as condições de excelência daquilo que se pretende oferecer.
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Outro exemplo refere-se aos bons resultados da ordenha: estes costumam ser fruto do estímulo constante, tanto para a liberação do leite, quanto das ideias. Não se estranha que as mesmas pessoas que alimentam o corpo com goles de leite nutram a alma com conjuntos bem elaborados de palavras. Afinal, somos todos, de alguma forma, dependentes da arte ancestral da ordenha.