A Serra do Rio do Rastro é a mais cênica das estradas de Santa Catarina. Do marco zero em Lauro Müller, a 230 metros acima do nível do mar, até alcançar Bom Jardim da Serra, no topo do Planalto Serrano, são 24 quilômetros retorcidos em 284 curvas.
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Sem o mar, principal atrativo turístico do Estado na janela do carro, mas com um admirável verde-montanha. Pelo ziguezague se alcança uma altitude de 1.421 metros. Bem mais que o Burj Khalifa, o maior arranha-céu do mundo, em Dubai, Emirados Árabe, que tem 829 metros e 163 andares.
A comparação permite a quem não conhece a Serra do Rio do Rastro imaginar o tamanho do desfiladeiro. Aberto para ligação do planalto com o litoral, o caminho evoluiu de um corredor de tropas para uma das mais espetaculares rodovias. Muitos catarinenses trabalharam para que a comunicação entre duas das mais importantes regiões fosse alcançada. Houve até quem tirasse dinheiro do próprio bolso para isso.
A reportagem recuperou parte desta história. Também percorreu a rodovia, pegou carona em caminhão, colocou uma câmera no capacete de um motorista, ouviu usuários. Escutou rasgados elogios às belezas do lugar, mas também duras críticas à falta de manutenção, que amplia os riscos à segurança.
Trecho aberto com verba emprestada de fazendeiro
Até os anos 1920, a comunicação entre planalto e litoral se fazia por mulas. Cercados de extensos muros de pedras, as chamadas taipas, os animais partiam das fazendas do alto da serra carregados de queijos, peças de charque, quilos de pinhão. Retornavam dias depois com mandioca, açúcar e sal. O vaivém pela serra íngreme exigia grande esforço. Cada animal transportava cerca de 120 quilos. Muitos despencavam nos peraus.
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Entre 1926 e 1930, um serrano de nome Joaquim Goulart era intendente no antigo distrito do Socorro, na época município de São Joaquim, atual Bom Jardim da Serra. Fazendeiro na região, ele tinha 17 milhões de metros quadrados de terra e 500 cabeças de animais.
Conhecedor das dificuldades para o comércio de troca com o litoral, Goulart teve a ideia de alargar o caminho. Com influência política, se propôs a abrir o traçado que levava ao topo da serra. Assim, veículos conseguiriam se aproximar do corredor.
A proposta foi recebida com entusiasmo na vizinhança. Porém, a prefeitura não tinha verba suficiente para a obra: onze contos e seiscentos mil réis. Joaquim Goulart decidiu tirar dinheiro do próprio bolso para bancar a iniciativa. O traçado de 17 quilômetros sobreviveu ao tempo.
O trecho da SC-390, que passa pelo mirante de Bom Jardim, foi alargado e recebeu asfalto. Mais de 90 anos depois, a atitude do fazendeiro orgulha os familiares:
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Nosso pai foi um dos primeiros a contribuir para a ligação. A intenção foi ajudar o desenvolvimento da região – diz o advogado Remi Goulart.
Na época, o prefeito de São Joaquim era o major Boanerges Pereira de Medeiros. Em janeiro de 1930, o político precisou entregar o cargo devido à Revolução de 1930. Mas registrou em relatório o reconhecimento a Joaquim.
Em um documento mantido pela família, ele destaca o empenho do superintendente. Relatou, ainda, que até janeiro de 1930 o município não havia finalizado o pagamento das parcelas: Joaquim tinha crédito de nove contos e seiscentos e trinta e cinco mil réis.
O pai foi uma liderança comunitária que fez o possível para elevar São Joaquim e melhorar a vida de quem vivia na região – considera Maury Goulart, também advogado.
Nasce a missão
Parte deste senso empreendedor de Joaquim Goulart veio da experiência no sobe e desce da serra. De tudo o que ouviu do pai, o filho Rogerio Goulart lembra quando ele falava sobre a segunda lua de mel.
Viúvo de Maria Cândida e com quatro filhos pequenos, Joaquim se enamorou de Otília Marghetti, filha dos donos de um armazém de secos e molhados em Tubarão.
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Depois do casamento, o casal embarcou no trem com destino a Lauro Müller. O romantismo terminou na estação: a jovem precisou subir no lombo do cavalo e enfrentar uma subida marcada por passagens estreitas e arriscadas.
Foram três dias enfrentando o terreno íngreme e pedindo pouso nas casas que encontravam no caminho – revela o farmacêutico e bioquímico.
Nó de pinho e água fria para explodir as rochas
Joaquim Goulart Júnior afirma que dos feitos que o pai contava o que mais o marcou foi o da pedra cortada. A rocha era um obstáculo inclinado que obrigava os animais a passar pelo lado. Era frequente cangalha das mulas, armação de madeira ou ferro que sustenta a carga, bater na pedra e cair. Despencavam 800 metros sem chance de resgate do animal e dos produtos.
Como não havia dinamite e tecnologia para estourar pedras, Joaquim teve uma ideia: ele e os empregados levaram cargas de nó de pinho da fazenda. Depois que formou uma grande pilha atearam fogo. Quando a brasa estava formada, jogavam água fria que tinham encontrado em nascentes próximas. O choque da água fazia a pedra rachar.
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Para mim, este foi o maior feito, já que o carreiro já existia e foi ampliado. A pedra cortada está preservada e pode ser vista ainda hoje por quem passa pela Serra do Rio do Rastro – afirma.