Imagine viver em um mundo sem som. Para mais de 9 milhões de brasileiros isso é uma realidade. Com o objetivo de aproximar mundos distantes – o feito para aqueles que ouvem e aquele construído para os que são surdos – a série Crisálida, produzida e filmada em Santa Catarina, está no catálogo da Netflix. A primeira produção bilíngue em libras e português do país surgiu em solo catarinense e, agora, pretende levar a percepção deste “outro mundo” para todos.

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No dia em que a série estreou no catálogo, o diretor Serginho Melo não escondeu a empolgação ao falar com a reportagem. Era por volta das 10h da manhã do dia 1º de maio e o diretor deveria ter assistido todos os quatro capítulos, já que estava acordado desde cedo. Porém, as ligações de amigos, a repercussão da série pelas redes sociais e o contato entre os membros da equipe impediram que a meta fosse concluída tão cedo.

Diante de tanto entusiasmo com o resultado da série, Serginho comentou a importância do trabalho para a comunidade surda e também para os ouvintes. Sem ser uma série destinada somente para surdos, o trabalho pretende divulgar a Língua Brasileira de Sinais para todos e mostrar que a vida de todos pode ser igual, independentemente de serem ouvintes ou não.

– Não é uma série para surdos ou ouvintes, somente. Não é uma série assistencialista. É para todos, para que as pessoas percebam que os surdos podem fazer tudo e que eles existem – disse o diretor.

Para conseguir filmar Crisálida, Serginho contou com o apoio de diversos integrantes da equipe. Mesmo comunicando-se em Libras, o diretor precisou da contribuição de intérpretes e de um consultor surdo para que tudo ficasse perfeito. Como muitas expressões do cotidiano de ouvintes não são utilizadas pelos surdos, textos e cenas precisaram ser adaptadas para este universo. Apesar de estes processos tornarem a filmagem mais complexa, em alguns momentos, outros pontos do trabalho foram destacados como muito positivos pelo diretor.

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O fato de os atores surdos serem muito expressivos, por precisarem colocar a expressão facial e corporal em ação no dia a dia, foi extremamente elogiado por Serginho Melo. Como exemplo, ele cita o fato de o sinal em Libras para “estou entendendo” ser o mesmo do que o de “não estou entendendo”. O que muda na comunicação é apenas a expressão facial: se não está entendendo, se faz uma expressão negativa e se a pessoa está entendendo, ela faz uma expressão positiva.

– Isso tudo para um diretor é muito positivo. Com um ouvinte eu poderia precisar ensaiar muitas vezes as expressões, com o surdo não temos isso. Costumo dizer que eles são atores na vida real e isso está estampado na série. Muitos não eram nem atores quando filmaram e hoje já estão sendo convidados para outros trabalhos – comentou o diretor.

Histórias de diversos mundos na mesma série

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Serginho Melo com equipe de intérpretes e atores. (Foto: Divulgação)

Crisálida é uma série com quatro capítulos que conta histórias diferentes, de situações vividas por surdos no cotidiano. Uma delas mostra a vida de Gustavo. O jovem é autor de um projeto inovador na área de segurança. Faz todas as negociações com a empresa que deseja aplicar o software de forma virtual, mas quando se apresenta aos empresários percebe que pode ter o projeto negado por ser surdo.

O ator que interpreta Gustavo é Harry Adams, 28 anos. Nascido no Paraná, Harry viveu em Florianópolis durante seis anos para cursar Letras – Libras e Português na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Foi neste período que recebeu o convite para participar da série. Ao ver as cenas na Netflix, do primeiro trabalho como ator, disse ter sentido uma grande emoção. E, a emoção, faz até ele pensar em aceitar novas propostas na área.

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Segundo Harry, ele e Gustavo possuem algo em comum. Harry também enfrentou alguns obstáculos no mercado de trabalho por ser surdo. Ele conta que muitas vezes os empregadores não achavam que ele seria capaz de executar todas as tarefas ou então, acreditavam que ele teria limitações na rotina. Hoje, trabalha em São Paulo como educador no Memorial da Inclusão e reconhece que nem todos os empregadores sabem que os surdos podem fazer tudo. A série é uma boa oportunidade para isso ser expressado.

Quem também interpretou um personagem marcante foi Miriam Royer, 28 anos. Miriam trabalha como professora de Libras e até ficou balançada sobre qual profissão prefere após participar da série. Na série, ela dá vida à história de uma mãe que perde a filha. A cena em que Valentina, personagem vivida por ela, perde a filha no parque foi complicada por envolver tanto choro e desespero, conta a atriz.

Para ela, cenas como esta, do cotidiano, podem mostrar os desafios reais dos surdos ao pedirem por informações ou quando necessitam acessar algum serviço público.

Intérprete de Libras vive protagonista da série

Histórias como a de Miriam e Gustavo, na série, possuem sempre um fio que os une. Na vida real, esse papel geralmente é de intérpretes ouvintes que traduzem falas para os surdos. Na série, também é um intérprete que faz esse trabalho. Thiago Rossi, 30 anos, vive o protagonista de Crisálida. Como Bruno, é ele quem conecta todos os núcleos da série.

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Estudante de Letras, ele foi colega de sala da autora da série, Alessandra Pinho. Além de intérprete, Thiago é drag queen e teve a história como inspiração na série. Quando acordou no dia de estreia na Netflix, também não escondeu a emoção. Ver que estava ali, ao lado de atores das séries favoritas, foi uma grande surpresa.

Acostumado a perceber os dilemas de quem é surdo na rotina de trabalho, fala sobre importância de a série catarinense atingir outras pessoas. O momento para ele é de orgulho por ver o trabalho

concretizado e no catálogo mundial de streaming, mas também é de conscientização e de oportunidade, para que os surdos percebam a própria vida estampada para todos.

Novas temporadas

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Ivan Assis: Assistente de Câmera. (Foto: Divulgação)

O diretor Serginho de Melo explica que o sonho de ver a produção na Netflix foi resultado de diversas negociações com a plataforma. Até o “sim” surgir, foram vários “não” ouvidos pela equipe. O piloto da série foi feito em 2014 e a primeira temporada é resultado do investimento como vencedores do Prêmio Catarinense de Cinema, em 2015. Outras temporadas ainda estão em análise e aguardam a liberação de recursos pela Agência Nacional do Cinema (Ancine).

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– O Brasil vive momentos conturbados. Fora o coronavírus, que realmente impede que a gente trabalhe, estamos aguardando que profissionais sejam contratados para que a Ancine libere uma série de projetos parados – disse o diretor.

O comentário sobre a demora nos projetos da Ancine é devido à série de trocas e demissões no órgão público. Como Crisálida também venceu o Prêmio Catarinense de Cinema, em 2019, a equipe tem direito a receber a quantia necessária para gravar a segunda temporada. Porém, até abril de 2020, a espera não tinha data para acabar.

Por enquanto, diretor e atores seguem tocando projetos pessoais e outras profissões, porém todos permanecem com o desejo vivo de ver outras temporadas de Crisálida na tela do Netflix.