A maior parte do público da série “Cavaleiro da Lua” pode não ter percebido, mas o diretor Mohamed Diab praticamente mostrou um dedo do meio para o regime de seu país natal, o Egito. Um dedo metafórico –mas ainda assim um dedo, voltado a um governo obcecado pela censura.
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Diab decidiu tocar a música “El Melouk” nos créditos do segundo episódio, que foi ao ar neste dia 6. O gênero da canção, conhecido como mahraganat, é proibido pelo regime egípcio. Artistas não podem, em tese, se apresentar em casas de show. Às vezes, são detidos pela polícia.
O gesto não passou batido no Egito nem na diáspora. Foi recebido como catarse coletiva. Não só porque Diab desafiou o governo conservador que controla o Cairo, mas porque conseguiu também colocar uma música popular associada às classes baixas em uma série da Marvel, no Disney+. De certo modo, como brasileiros reagem aos pulos da Anitta.
O mahraganat é o cruzamento do eletrônico com o rap e o hip-hop. Tem um significado parecido com o do funk proibidão do Rio. O nome quer dizer “festivais”, em português, no sentido de ser uma coisa celebratória.
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O gênero apareceu no subterrâneo egípcio no início dos anos 2000 como a expressão de uma população cada vez mais marginalizada. Por vezes alucinante, com batida rápida e letra explícita, essa música virou trilha sonora de casamentos. Era o que se ouvia nos táxis e nos barcos-discoteca que navegam pelo rio Nilo. Uma das faixas mais populares, “Bent El-Geran”, tem 588 milhões de visualizações no site YouTube.
O mahraganat tocou nos protestos que, em 2011, culminaram na queda do ditador Hosni Mubarak. Depois daquelas revoltas, o país elegeu o líder islamita Mohamed Morsi, marcando uma guinada conservadora. Em seguida, o Exército deu um golpe e colocou o militar Abdel Fattah al-Sisi no poder, onde segue até hoje. Como maneira de se legitimar e apaziguar setores mais radicais, o regime vem perseguindo e reprimindo a produção artística e a liberdade de expressão de uma maneira geral.
Esse gênero musical incomoda, em especial, porque é um forte símbolo das classes trabalhadoras e dos jovens que já se mostraram capazes de derrubar um ditador. O conteúdo das letras incomoda as autoridades, também. Em alguns casos, os artistas mencionam drogas e sexo de uma maneira explícita. Depois que um grupo se apresentou em 2020 falando de beber álcool e fumar maconha, o sindicato dos músicos emitiu uma nota proibindo qualquer apresentação de canções de estilo mahraganat.
A proibição é exercida pela polícia, que monitora espaços de show. Isso não quer dizer que a música tenha desaparecido. Migrou para ambientes privados, longe dos olhos do Estado. Artistas também passaram a se apresentar no exterior, como outra maneira de escapar de toda a censura.
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“El Melouk”, a música que tocou em “Cavaleiro da Lua”, não é tão polêmica em si. A letra é uma espécie de estufada de peito, com um eu lírico se gabando de suas qualidades. Mas não deixa de ser a expressão de um gênero que o governo desautoriza. O clipe dos artistas Ahmed Saad, Enaba e Double Zuksh teve mais de 56 milhões de visualizações.
O diretor de “Cavaleiro da Lua” não escolheu o gênero por acaso. Diab é conhecido pela sua crítica social, que bate na cara do regime. Seu filme “O Cairo 678”, sobre o assédio sexual no país, saiu em dezembro de 2010, poucos meses antes dos protestos, talvez como parte do espírito de uma época que já pressagiava um levante popular.
O longa “Eshtebak”, de 2016, conta a história de um grupo de pessoas preso em um camburão da polícia –e narra também o fracasso da revolução, que no final das contas acabou devolvendo o Egito a um regime militar.
Tão revolucionário quanto incluir uma canção de mahraganat em uma produção da Marvel é o fato de que “Cavaleiro da Lua” conta com uma equipe egípcia, a começar pelo próprio diretor. Pode parecer do senso comum que uma série em grande parte baseada no Egito e com pitadas de mitologia egípcia tenha atores e uma equipe do país.
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Hollywood, no entanto, até recentemente não se importava muito com a inclusão de algumas minorias. Infelizmente, é novidade que atores de origem árabe e islâmica tenham oportunidade de representar a si mesmos nas telas.
Diab, que além de diretor de “Cavaleiro da Lua” é produtor executivo, fez questão de trabalhar com conterrâneos. Quis assim evitar que a série reproduzisse os clichês associados ao Oriente Médio, como o de terroristas barbudos com metralhadoras reprimindo todas as mulheres.
Ele contratou a atriz egípcio-palestina May Calamawy (da série “Ramy”) para o papel de Layla. O egípcio-britânico Khalid Abdalla (do filme “O Caçador de Pipas”) ficou com o personagem Selim. Ao Hollywood Reporter, Diab estimou que 90% dos personagens egípcios na série foram interpretados por egípcios, incluindo papéis de figurantes.
Diab chamou também o compositor egípcio Hesham Nazih para compor a trilha sonora. Nazih produziu canções com toques clássicos da cultura árabe, mas que têm também as sonoridades urbanas de um lugar como o Cairo –que é uma caótica megalópole bastante parecida com São Paulo.
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O conjunto da obra acaba reforçando justamente essa ideia de que o Egito se parece com outras partes do mundo. Não é um país exótico, de odaliscas e camelos, mas uma outra margem do capitalismo, onde um gênero musical das classes trabalhadoras incomoda elites e autoridades.
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