Está fazendo 100 anos do primeiro Fla-Flu, o jogo que teria “inventado” a multidão, naquele ancestral 1912. para o seu mais consagrado oráculo – Nelson Rodrigues – o Fla-Flu não tem começo, nem fim. O maior clássico do futebol brasileiro começou “quarenta minutos antes do Nada”. Só então as multidões despertaram e passaram a se tornar forças políticas e sociais dignas de mudar a história.

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Exagero ou não, minha primeira sensação de ser “apresentado” a uma multidão foi num Fla-Flu, final dos anos 1950, com a inenarrável sensação de subir a “boca” de rampa do Maracanã e , de repente, ser introduzido na mágica atmosfera da multidão tricolor e rubro-negra, ondulante mar de cores e emoções. Deu Mengão 2 a 1, num ataque de suprema eufonia, pois a “linha” – bons tempos em que se atacava com cinco – soava muito bem: “Joel, Moacir, Henrique, Dida e Babá”…

Fla-Flu, um achado

O próprio acrônimo inventado por Mário Filho para o jogo, Fla-Flu, é uma composição de pura “eufonia”, uma escolha feliz de sons, uma sucessão harmoniosa de vogais e consoantes, som dissilábico extremamente favorável ao bom marketing do clássico centenário.

Num tempo pré-televisão, os ecos do Fla-Flu chegavam pelas ondas médias e curtas das grandes rádios, como a Nacional, a Tupi ou a Globo, com ícones do microfone como Waldir Amaral, Jorge Cúri, Doalcei Bueno de Camargo, Orlando Duarte, João Saldanha, Rui Porto, Luiz Mendes, José Maria Scassa – e tantos outros, entre narradores, comentaristas ou “torcedores” disfarçados de homens da mídia, como Ari Barroso e o próprio Nelson Rodrigues.

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Foi numa “Resenha Esportiva Facit”, famosa mesa redonda do futebol, que o videoteipe foi introduzido como dirimente de lances duvidosos, até a noite de

Fla-Flu em que, diante do flagrante impedimento de Rodrigo, tosco centroavante tricolor, que Nelson apelidara de “El Cid”, o moderno equipamento acabou destratado e desacreditado:

– O videoteipe não passa de uma máquina burra, à qual falta o calor e a sabedoria do olho humano…

Tão importante se tornou o Fla-Flu no inconsciente do futebol brasileiro que o próprio calendário passou a ser assinalado pelos “highligths”, os “melhores momentos” do grande jogo: o Fla-Flu de 1912, em que o goleiro Marcos Mendonça defendeu dois pênaltis e o centroavante Back fez o gol da vitória, no lance seguinte. Ali teria nascido o “Sobrenatural de Almeida”. O Fla-Flu da Lagoa, anos 1940, em que o tricolor derrotou o Mengo em sua própria casa, a Gávea, fazendo cera com o expediente de atirar bolas pra fora do estádio, nas águas da Lagoa Rodrigo de Freitas. E houve os Fla-Flus da era Zico – dourados para os rubro-negros dos anos 1980 – ou o lembrado Fla-Flu do gol de barriga, de Renato Gaúcho, em 1995.

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Clássico de heróis e vilões, de craques e inesquecíveis primeiros violinos, como Didi e Gérson, ou “grossos” como Flávio, o Minuano, e Nunes, o “João Danado” – sem falarmos nos “divinos”, Zico, pelo rubro-negro, e Rivelino, pelo tricolor.

Clássico eterno

A linguagem do centenário Fla-Flu ainda ecoa pelas ondas hertzianas estocadas no passado, com os velhos locutores amplificando o gol de folha seca de Didi, a tabela entre Dida e Babá, o gol raçudo de El Cid – o que desafiou o videotape – ou a cabeçada certeira de Silva, o “batuta”. Como imortalizou o mestre inventor da aura do grande clássico de hoje no Maracanã, Nelson Rodrigues, o Fla-Flu é intemporal, atravessará os tempos, impávido, até o dia do Juízo

Final:

– Daqui a duzentos anos o Brasil dirá, mordido de nostalgia, “ah, aquele Fla-Flu! – quem não o viu, não viveu…

O futebol, um tanto graças ao Fla-Flu, é essa lúdica guerra, esse ritual cheio de bandeiras, cantos, exércitos e batalhas. Cheio de risos, caretas, repleto de “ais” e “uis”, além de colecionar a mais fina flor dos palavrões, herdados do Bocage das piadas.

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Cem anos de boas emoções entram em campo hoje à tarde no Engenhão. “Que vença o melhor”, diria o torcedor politicamente correto.

“Que vença o Mengão”, suspiro eu, que sou Fla, com o perdão do Nelson e dos tricolores.