Regina H. Boone começa a entrevista me enchendo de perguntas: curiosa, quer saber qual é o veículo para o qual trabalho, por que ela foi escolhida como possível entrevistada, onde moro e até mesmo como está o clima.

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— Onde moro, na Virginia, normalmente não temos tanta neve, mas neste inverno especialmente, tivemos muita! Mas não dura muito, porque logo o sol aparece e derrete tudo. Eu vivia no Michigan, e, meu Deus… Lá era horrível – conta.

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Logo depois, ela ri e pede desculpas: 

— Viu, isso é o que acontece quando você entrevista uma jornalista. Eu precisava tirar minha curiosidade do caminho – brinca.

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Fotojornalista Regina H. Boone
Fotojornalista Regina H. Boone (Foto: Arquivo pessoal)

Regina é uma fotojornalista premiada: trabalhando na área há mais de 20 anos, principalmente nas cidades de Richmond, na Virginia, e Detroit, no Michigan, ela teve uma fotografia de 2016 selecionada pela CNN entre as “100 fotos que definiram a década”. Descendente de negros e japoneses, ela se empenha em registrar a vida, os problemas e as necessidades da comunidade negra da cidade natal. Entre 2017 e 2018, fez uma extensa pesquisa sobre o avô, descendente de japoneses preso e desaparecido nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.

Veja mais na entrevista a seguir:

Quando e como você começou a trabalhar com fotografia? Quando você descobriu que era isso que queria fazer como profissão?

Oficialmente, digamos assim, sendo paga para isso, comecei em 1996. Comecei a trabalhar no jornal da minha família, o Richmond Free Press. Meu pai me contratou, mas com uma condição: ele me deu um período de testes de seis meses, porque eu não tinha experiência nenhuma com jornalismo. Não estudei jornalismo, não estudei fotografia… Minha formação foi em ciência política. Eu era muito jovem naquela época, mas meu pai disse que eu tinha um bom olhar para fotografia. Mas ele deixou bem claro que, se não funcionasse, ele ia mesmo me demitir (Risos). Deu certo, e trabalhei com meus pais por três ou quatro anos. E aí decidi, digamos assim, levar a fotografia mais a sério como carreira. Então fui estudar comunicação.

Mas, recentemente, comecei a olhar umas fotografias antigas… Sabe, porque na pandemia temos mais tempo de fazer coisas que não fazíamos há séculos (Risos). E percebi que, desde os tempos da escola, eu era aquela pessoa que sempre tinha uma câmera nas mãos: eu estava sempre documentando meus amigos, os corredores da escola, festas na época da faculdade…

Então eu comecei a pensar: “Uau, eu venho documentando minha vida há muito mais tempo do que eu me lembrava”. Na época, não via a câmera como uma ferramenta, uma voz, uma maneira de ser criativa, de registrar história, de desafiar modos de ver as coisas… Mas eu já fazia fotojornalismo muito antes de perceber que estava fazendo.

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Você acha que ter estudado ciência política se reflete no trabalho? Na maneira como você vê ou apresenta as coisas…

Não acho que você necessariamente precisa estudar jornalismo ou fotojornalismo para ser um bom fotojornalista: acho que é mais interessante você estudar um tópico específico, sobre o qual entenda, para então cobrir aquele tópico especificamente, falar com propriedade sobre ele. Acho que estudar ciência política me deu uma base de pensamento crítico, de como ver e analisar as coisas. Acho que tudo isso aparece através das minhas lentes e se reflete na maneira como me preparo, na maneira como pesquiso, como faço meu trabalho. Você sempre aplica conhecimentos prévios ao trabalho como jornalista, que é essencialmente prático.

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Às vezes, uma única fotografia precisa dizer tudo. Então você precisa ter um entendimento profundo do que está vendo. O velho ditado diz que “uma imagem vale mais que mil palavras”, e acho que às vezes isso é muito verdade. Claro que o trabalho em equipe entre o fotógrafo e alguém que escreve traz a história completa. Nós trabalhamos juntos para que os dois aspectos se complementem. Mas sinto que às vezes as pessoas leem mais, ou mesmo exclusivamente, por meio do visual. Na internet, muitas histórias não chamam atenção se não tiverem uma boa imagem para acompanhar. Acho que muitas vezes a parte visual pode guiar a história, e isso mostra a importância do fotojornalismo. Acho que no passado muitas vezes o fotojornalismo foi visto como de menor importância, o que é bastante injusto.

“Muitas histórias não chamam atenção se não tiverem uma boa imagem para acompanhar. A parte visual pode guiar a história, e isso mostra a importância do fotojornalismo”

Você tem assuntos ou temas favoritos para fotografar?

Gosto muito de contar as histórias da comunidade negra dos Estados Unidos. Agora, especialmente, em Richmond, trabalho em um jornal semanal muito focado na comunidade negra local; mas mesmo quando trabalhava em Detroit, em um jornal diário, com temas mais amplos, gostava de retratar essas histórias sempre que possível. Claro que isso não me limita a um assunto só, não quer dizer que só fotografe isso. Mas acho que nós sempre somos atraídos para as coisas com as quais nos identificamos; sempre queremos amplificar histórias de pessoas que de alguma forma refletem o que somos. E sinto que muitas vezes a comunidade negra tem sua história contada por outras pessoas – geralmente, homens brancos.

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Acho muito importante ser uma mulher negra por trás das câmeras, mostrando essas histórias por meio do olhar de uma mulher negra. Sinto que tenho uma responsabilidade em mostrar uma perspectiva diferente daquela que é mostrada na maioria dos casos.

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Foto mostra nuvens de fumaça de gás lacrimogênio no monumento do general Robert E. Lee, após protesto pela retirada de estátuas ligadas aos Estados Confederados da América, defensores da escravidão, durante a Guerra Civil dos EUA no século XIX
Foto mostra nuvens de fumaça de gás lacrimogênio no monumento do general Robert E. Lee, após protesto pela retirada de estátuas ligadas aos Estados Confederados da América, defensores da escravidão, durante a Guerra Civil dos EUA no século XIX (Foto: Regina H. Boone, Richmond Free Press)

Você trabalhou cobrindo os protestos do movimento Black Lives Matter no ano passado. Como foi essa experiência?

Gosto do uso da palavra “protesto” para se referir ao movimento. Particularmente, uso a palavra “levante” (“uprising”, em inglês). Uma palavra que não uso de jeito nenhum é “tumulto” (“riot”). Há muita controvérsia a esse respeito, e acho que a escolha de palavras diz muito sobre o que cada pessoa pensa a respeito do movimento. Mas, sim, cobri os levantes, aqui em Richmond. Só temos duas fotógrafas, eu e a Sandra Sellars, que também é uma mulher negra. E trabalhamos 60 dias seguidos, nas ruas, cobrindo o que estava acontecendo.

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Acho que o assassinato de George Floyd foi a gota d’água, uma reação a mais de 400 anos de história. Richmond é a antiga capital dos Confederados (os Estados Confederados da América, defensores da escravidão, durante a Guerra Civil dos Estados Unidos no século XIX), então temos uma história cheia de momentos horríveis por aqui. Nas ruas de Richmond, temos muitas estátuas e monumentos homenageando soldados e generais confederados, então muitas pessoas começaram a derrubar essas estátuas – até que a própria administração da cidade decidiu remover oficialmente os monumentos. Há uma estátua enorme, de 18 metros de altura, de Robert E. Lee (militar de carreira e general dos confederados), que permanece; há toda uma briga judicial para decidir se a estátua vai ser removida ou não.

Então, o local se tornou um epicentro dos levantes do ano passado, o local onde as pessoas iam se reunir e organizar para as marchas. Fizeram inclusive um memorial para as vidas negras que foram perdidas ao longo dos anos. Tornou-se um local bonito, de cura.

O trabalho foi absurdamente exaustivo, mas eu sentia que estava no lugar certo, na hora certa; registrando a história exatamente onde minha lente precisava estar. Acho que não é coincidência que eu tenha decidido voltar para a Virginia há três anos. Em 2090, alguém pode ver as fotografias registradas por duas mulheres negras desse momento histórico. Eu não acredito em imparcialidade total no jornalismo. Como você vai desligar seus sentimentos quando está trabalhando? Então é claro que minha revolta, minhas lágrimas afetam meu trabalho, de um jeito que me ajuda a documentar corretamente as emoções envolvidas no que está acontecendo.

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E é por isso que defendo que o jornalismo local é tão importante! Nós não precisamos nos atualizar no que está acontecendo, correr atrás da história. A história é a nossa história, é o que nós vivemos todos os dias. Nós não precisamos que um veículo de mídia gigante, de fora, nacional ou internacional, venha contar nossa história, venha nos validar. Nós validamos nós mesmos. Nós sabemos do que estamos falando. É importantíssimo defender a existência do jornalismo local, jornais locais, rádios locais. O superlocal é essencial.

“Não acredito em imparcialidade total no jornalismo. Como você vai desligar seus sentimentos quando está trabalhando? Minha revolta, minhas lágrimas afetam meu trabalho, de um jeito que me ajuda a documentar as emoções envolvidas no que está acontecendo”

E tudo isso em meio a uma pandemia. Muitos de nós, jornalistas, estão tendo a sorte de poder trabalhar remotamente, de casa, mas, para um fotojornalista, isso é impossível.

Exatamente! Acho que muitas pessoas não param para pensar que nós, fotojornalistas, nunca paramos, nunca estivemos em quarentena. Estamos lá fora desde o primeiro dia. E não somos considerados linha de frente, então não somos prioridade na fila da vacinação… (Risos). É bastante assustador. Você se sente ameaçado, de certa forma.

Você está fisicamente exausto por causa do trabalho em si; mas a ansiedade por causa da pandemia deixa você mentalmente exausto também. As pessoas se tocam, se esbarram; as pessoas em protestos gritam… Você está na rua, com duas máscaras, óculos, luvas, e não para de pensar: “Têm quantas pessoas em volta de mim nesse momento?”.

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Sempre me senti registrando várias pandemias. Temos a pandemia de coronavírus, mas temos a pandemia do racismo, da supremacia branca… Todas são guerras que estamos lutando diariamente, e que precisam ser documentadas, para que as pessoas ao redor do mundo saibam o que está acontecendo.

Você acredita que há um clima maior de otimismo, agora que Joe Biden foi eleito?

Não sei se otimismo, mas diria que há uma sensação de alívio. É como se todo mundo sentisse que, depois do Trump, só temos como melhorar, porque simplesmente não vai ficar pior do que aquilo. Não acho que o Joe Biden ou a Kamala Harris tenham uma varinha mágica que vai fazer tudo melhorar subitamente. Não é como apertar um botão de “reset”, que vai apagar tudo o que foi feito antes – antes do Trump, inclusive. Ainda é uma luta. Mas sinto uma energia melhor.

Não preciso acordar me perguntando se durante a madrugada o presidente postou algo no Twitter que vai causar uma crise diplomática mundial. É cansativo ouvir coisas negativas todo dia. E, como jornalista, você não tem como fugir disso: você não pode desligar a TV e ignorar o que está acontecendo. Saber de tudo faz parte do trabalho.

A eleição do Trump deu luz verde para várias pessoas falarem verdades que sempre pensaram, mas que antes tinham receio de manifestar. E acho que isso até é bom, de certa forma. Eu sempre prefiro a verdade, prefiro saber com quem estou lidando. Me incomoda o politicamente correto, quando o politicamente correto é feito só da boca para fora: a pessoa fala uma coisa, mas não acredita naquilo de verdade. A verdade com o Trump era muito feia, mas ela iluminou muita coisa. Agora sabemos quem realmente são as pessoas, de quem ficar longe, em quais lojas comprar, quais lojas evitar… (Risos).

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A busca para descobrir o que aconteceu com o seu avô paterno virou um documentário. Você pode nos contar essa história?

Meu pai, fundador do Richmond Free Press, o jornal para o qual trabalho, morreu de câncer no pâncreas em 2014, só dez meses depois de ser diagnosticado. Eu vivia em Detroit nessa época, mas voava muito para cá para estar com meu pai e ajudá-lo. E, nas últimas semanas de vida, ele começou a falar sobre o pai que ele nunca conheceu. E ele me perguntou se eu ainda tinha uma foto do pai dele, que meu pai me deu ainda nos anos 1990. E eu tinha, porque guardei essa foto com muito cuidado. Meu pai nunca tinha me falado realmente o que aconteceu com meu avô: me dizia que o governo norte-americano havia tratado injustamente muitos imigrantes e descendentes de japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, mas nunca me contou a história completa.

Mostrei ao meu pai a fotografia que ainda tinha, e ele começou a dizer coisas como “Eu queria ter conhecido meu pai melhor”, “Eu queria saber mais sobre ele”… E ele pediu que, quando ele morresse, eu e minha mãe colocássemos o nome do pai dele, junto do nome da mãe dele, no obituário – mas eu nem sabia o nome do meu avô! Em outra conversa, ele disse que a história do meu avô e de outros descendentes de japoneses precisava ser contada para o mundo. Basicamente, meu pai me deu uma última pauta na qual trabalhar. (Risos).

Depois que meu pai morreu, passei um tempo com isso na cabeça, tentando descobrir por onde começar. Nesse meio tempo, consegui uma bolsa na Universidade de Michigan, ao lado de outros 20 jornalistas, para trabalhar em um projeto jornalístico pessoal. E meu projeto inicial era uma pesquisa sobre a viabilidade da mídia negra, feita por afro-americanos. Então, em uma das primeiras aulas, todos precisávamos apresentar nossas propostas, e falei sobre isso, mas aí completei: “Tenho um projeto paralelo, pessoal, que é descobrir o que aconteceu com meu avô, um japonês que foi preso injustamente na Virginia durante a Segunda Guerra Mundial”. E todo mundo fez tipo: “O quêêê?”. (Risos). E o orientador me convenceu de que esse era o projeto de pesquisa para o qual eu devia dar prioridade. Trabalhei nisso entre setembro de 2017 e maio de 2018.

Meu pai tinha três anos de idade em 7 de dezembro de 1941, quando Pearl Harbor aconteceu. Naquele mesmo dia, meu avô foi preso – assim como muitos outros descendentes de japoneses que viviam nos Estados Unidos. Foi a última vez que meu pai viu o pai dele. Foi outro capítulo muito feio na história do nosso país. Tenho uma colega que é radiojornalista, e ela ficou supercuriosa a respeito do que eu estava fazendo – e, de alguma forma, ela contatou a NHK, uma emissora pública do Japão, e eles começaram a acompanhar meu trabalho. Então, o documentário (batizado de “A Vanished Dream: Wartime Story of My Japanese Grandfather”) é sobre minha busca, minha pesquisa.

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Em 2019, uma fotografia sua foi escolhida pela CNN como uma das 100 fotos que definiram a década. Você pode nos contar a história dessa foto?

Essa foto foi capa da Time Magazine. Fiz essa foto em janeiro de 2016, quando a crise aquífera de Flint estourou (Flint, cidade do Michigan, teve suas fontes de água potável contaminadas com chumbo). Localmente, já cobríamos esse assunto há algum tempo, mas foi quando o que estava acontecendo começou a ganhar projeção nacional, e até mesmo mundial. Então eu e um colega fomos enviados a Flint para tentar dar rostos àquelas histórias, conversar com quem estava vivendo aquilo na pele. Então, encontramos essa família que nos recebeu, e fomos até a casa deles, conversar, ver o que estava acontecendo.

Capa da revista Time, de fevereiro de 2016, com foto de Regina H. Boone, mostra o menino Sincere com feridas causadas por conta do chumbo na água em cidade do Michigan. Essa imagem foi selecionada pela CNN como uma das 100 fotos que definiram a década
Capa da revista Time, de fevereiro de 2016, com foto de Regina H. Boone, mostra o menino Sincere com feridas causadas por conta do chumbo na água em cidade do Michigan. Essa imagem foi selecionada pela CNN como uma das 100 fotos que definiram a década (Foto: Reprodução)

Enquanto a mãe me explicava o que estava acontecendo, ela me mostrou as feridas na pele desse menino, causadas pela água, e decidi fotografar. Ele tinha só dois anos, sabe – e o nome dele é Sincere (“sincero”, em inglês), o que me chamou muito a atenção. É um nome tão especial! Acho que essa pauta meio que mudou minha vida. O nome do menino grudou na minha cabeça, bem nesse período em que eu estava pensando no meu pai, na missão que meu pai me deixou… Comecei a me perguntar: “Eu estou vivendo uma vida sincera? Estou sendo sincera comigo mesma?”.

Sinto que isso meio que me colocou no caminho de me dedicar a essa história, do meu avô. Sei que parece loucura! (Risos). Mas na minha cabeça tudo está conectado. E ligado por duas fotografias: a fotografia de Sincere e a fotografia do meu avô, que meu pai deixou comigo.

Parece que a fotografia é uma força orientadora na minha vida.