A televisão no andar superior de um restaurante a quilo na avenida Hercílio Luz, em Florianópolis, passava ao vivo a sessão do Senado que decidiria pelo afastamento da presidente Dilma Rousseff por 180 dias. Quando a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) apareceu na tela em entrevista falando que alguém sem nenhuma culpa estava prestes a ser condenada, uma mulher parou de comer e comentou consigo mesma, com sotaque manezinho:

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— Não, ela não tem culpa, quem tem é (sic) eu!

O presidente do PT municipal, Carlos Eduardo Souza, almoçava no andar térreo e não ouviu o deboche – e nem precisaria, para saber o tamanho da batalha encarada pelas forças contrárias ao impeachment desde o último dia 11. O desafio é convencer a opinião pública de que houve um golpe e, portanto, o ex-vice-presidente Michel Temer (PMDB) chegou de forma ilegítima ao poder, uma missão que hoje parece tão difícil quanto encontrar algum parlamentar que invoque a ética sem esqueletos no armário.

— A tal da Ponte para o Futuro, que eu prefiro chamar de “pinguela para o passado”, não foi nem apresentada nas eleições, só que agora aproveitaram a brecha para a empurrarem goela abaixo do povo — diz ele, já em uma sala de reuniões na sede do diretório estadual do partido, próximo ao local onde havia pouco saboreara um prato de sushi sem perceber a observação indigesta da cidadã de bem.

Cadu, como é conhecido, refere-se ao plano de governo divulgado pelo peemedebista tão logo ficou claro que a escolhida por 54 milhões de brasileiros para chefiar o país seria destituída por (367) deputados federais e (55) senadores. Para reverter o quadro, confia na ação conjunta dos alegados 55 mil filiados ao PT catarinense e da Frente Brasil Popular. Segundo o dirigente, há 110 comitês em defesa da democracia espalhados pelo Estado, que irão realizar reuniões de conscientização e atos públicos.

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Composta por partidos de esquerda, centrais sindicais e 58 movimentos sociais e entidades de classe, a Frente Brasil Popular surgiu oficialmente em setembro de 2015. Mas, informa Cadu, já estava sendo gestada desde o ano anterior, “quando a reeleição de Dilma acentuou a atuação da mídia contra o governo federal e o PT”. Na opinião do petista, ao sentir que havia campo e margem para desconstruir o projeto vitorioso nas quatro últimas eleições presidenciais, a direita se ouriçou.

— Aí viu-se a necessidade de, apesar das divergências com o governo quanto às reformas tributária, fiscal e política, formar essa frente porque somente um partido não seria páreo para suportar toda essa pressão. Ontem foi um prenúncio do que vai acontecer.

Na véspera da votação do Senado, ocorreram protestos em todo o país. Na capital catarinense, conforme a estimativa da PM, cerca de 200 pessoas (500, no cálculo dos organizadores) participaram da manifestação em frente ao terminal de ônibus do Centro. Uma delas era o psiquiatra e médico de família e comunidade Marcelo Coltro, 43 anos, coordenador do programa federal Mais Médicos em Santa Catarina. De acordo com ele, são 700 médicos que atendem 1,2 milhão de pessoas, fornecendo 40% de todas as consultas na atenção primária à saúde e 100% de cobertura à população indígena e quilombola.

— Estou aqui porque entendo que Temer promoverá a desvinculação dos recursos federais para saúde e educação, desrespeitando a emenda constitucional 29 (curiosamente, aprovada em 2000 na Câmara presidida pelo então deputado por São Paulo). Isso é um sério risco de o SUS ser ferido de morte, porque não vai conseguir mais atender a população de forma universal e equânime – explica.

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A Central Única dos Trabalhadores (CUT), integrante da Frente Brasil Popular, levanta outra bandeira: a garantia de que os direitos trabalhistas sejam mantidos e, não custa sonhar, ampliados. Embora seja crítica à gestão do PT no Planalto, a presidente estadual Anna Julia Rodrigues prega que o momento exige deixar diferenças pontuais em segundo plano e unificar as esquerdas em nome da causa maior da democracia.

— O governo golpista não terá trégua em nossas cobranças. Também condenamos este Judiciário seletivo. Vamos para as ruas mostrar que várias conquistas sociais foram obra de Lula e Dilma. Não está descartada uma greve geral — diz a professora da rede pública estadual, primeira mulher a comandar a CUT em Santa Catarina.

Em impacto, o protesto em Florianópolis foi tímido diante das mobilizações encabeçadas pelo componente da Frente Brasil Popular que talvez mais tenha expertise em agitprop (agitação e propaganda), expressão extraída do marxismo-leninismo para designar a disseminação de ideias e princípios entre operários, camponeses, estudantes, intelectuais e formadores de opinião: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na manhã do dia 10, seus militantes interditaram diversas rodovias em cidades do Oeste e da Serra catarinense.

— O cenário é de escuridão, com esse golpe orquestrado pelo sistema financeiro, a burguesia e as transnacionais. Vamos avaliar a conjuntura adversa em reunião na semana que vem. Devemos analisar as correlações de forças da sociedade, pois temos responsabilidades com as famílias assentadas e projetos de desapropriações em andamento. Esperamos que o outro lado não venha com represálias ou violência, porque, se vierem nos criminalizar, vamos reagir — afirma Vilson Santin, da direção estadual e nacional do movimento.

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Ele se alinhou com mais 300 pessoas para bloquear o trevo do Cansian (confluência da BR-116 com a BR-470), em Curitibanos. O congestionamento chegou a dois quilômetros até o início da tarde, quando o tráfego foi liberado. No dia seguinte, Santin já havia percorrido os 300 quilômetros entre o entroncamento e a Assembleia Legislativa. Conversar com o ex-deputado estadual (eleito pelo PCB em 1990) de 60 anos, 36 dos quais dedicados à militância, dá uma amostra das relações do movimento com os presidentes da República.

Com exceção de José Sarney, alçado ao cargo em 1985, um ano depois da fundação do MST, Santin tem o que dizer de cada um dos chefes do Executivo nacional de lá para cá. Fernando Collor significou “repressão”, época do slogan “ocupar, resistir, produzir”. Itamar Franco é associado com “fôlego”. Do período Fernando Henrique Cardoso vem a triste lembrança do massacre de Eldorado de Carajás (PA), quando 19 sem-terra foram mortos pela polícia exatamente 20 anos antes da sessão do impeachment de Dilma na Câmara – por causa disso, 17 de abril é o Dia Nacional da Luta pela Terra e Reforma Agrária no Brasil. Até chegar às gestões petistas.

— Lula disse que faria a reforma agrária em uma canetada. Não fez, mas avançou. Com Dilma, tivemos pouco diálogo. Em sua campanha para o primeiro mandato não pronunciou “reforma agrária”. Ela tinha outra postura, voltada ao agronegócio, assim como parte do PT também tem essa visão — diagnostica, no gabinete do deputado Padre Pedro Baldissera (PT) na Assembleia Legislativa.

As críticas a Dilma não param por aí. Santin enumera as reformas estruturantes, além da agrária, que o MST reivindica: urbana, tributária, dos meios de comunicação e política. Não foi contemplado em nenhuma delas pela presidente. Também a alertou que esse modelo de coalizão, com “alianças extravagantes”, cedo ou tarde entraria em crise. Foi ignorado.

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— Não foi por falta de aviso. Como se diz no campo, ela está colhendo o que semeou. Chegou ao segundo mandato já cambaleando. Ganhou graças à esquerda, mas depois de eleita estendeu a mão para a direita. Não podia atender pautas populares, mas podia do capital. Nunca fomos complacentes com isso, tanto é que ocupamos o Ministério da Fazenda para o (Joaquim) Levy sair, ele era uma raposa cuidando do galinheiro – reclama.

Ainda assim, Santin se dispõe a sair de seu lote de 10 hectares no assentamento Anita Garibaldi, em Ponte Alta, onde vive há 13 anos com a mulher e o caçula dos três filhos que tem, para defender Dilma do que considera um “golpe abominável e desprezível”. No entanto, independentemente do desfecho da situação, quer discutir um novo projeto para o país, que não mexa em direitos conquistados nem imponha sacrifícios aos trabalhadores.

— A elite tem o padrão da intolerância. Estamos preocupados com esse ódio de classes e essa onda fascista — confessa, citando o ensinamento do sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995): “Não se deixar cooptar, não se deixar liquidar e lutar sempre para obter vitórias para o povo”.

Na noite da mesma quarta-feira em que Cadu, Marcelo, Anna Julia e Santin levantavam-se contra o que consideram golpe, o coordenador estadual do Movimento Brasil Livre (MBL), Alexandre Paiva, circulava entre as mil pessoas separadas por um muro provisório na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Em volta, o número de policiais era superior ao de manifestantes que cantavam e dançavam ao som de um trio elétrico, enquanto senadores varavam a madrugada na tribuna justificando porque votariam pelo impeachment de Dilma.

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A fraca movimentação era esperada porque, conforme ele, “o pessoal estava muito tranquilo” com o resultado. Do outro lado do muro, no espaço destinado aos apoiadores do governo, o fluxo também se esvaía. Paiva estava havia um mês na capital federal, onde onde se encontrou com outros integrantes do movimento para fazer lobby com os deputados indecisos quanto à admissibilidade do processo contra a presidente, no dia 17 de abril. Quem não pôde se deslocar até lá, lotou a caixa de entrada de e-mails e as páginas do Facebook dos deputados.

A pressão deu resultado. O MBL garante que pelo menos oito parlamentares haviam se convertido, incluindo o peemedebista catarinense Celso Maldaner, que na última hora mudou o voto e disse sim ao impeachment. Já no Senado, a expectativa do movimento era de no mínimo 57 votos. Quase na mosca: o placar foi de 55 a 22. O afastamento de Dilma não significa, porém, que o MBL vá baixar a guarda.

— Nosso intuito é ver Lula preso. Nós não vamos sossegar. A turma do “pixuleco” vai seguir — promete Paiva.

De fato, na quinta-feira o infame boneco inflável de 15 metros de altura foi inflado na Beira-Mar Norte, em Florianópolis, com direito à proteção policial para evitar que algum “petralha” mais inflamado tentasse “assassiná-lo” – o que já ocorreu antes, como denunciam os remendos. Paiva assegura que tratava-se do original, usado pela primeira vez em manifestação na Ponte Estaiada, em São Paulo. Em uma espécie de turnê pelo país, na semana anterior a representação do ícone petista em trajes de presidiário passara por Goiânia e Uberlândia (MG) e “chamou mais atenção do que a tocha olímpica”, cuja passagem por essas cidades deu-se na mesma ocasião. Na sexta, a peça foi inflada em Balneário Camboriú.

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Por trás da criação do boneco está outro grupo, o Movimento Brasil (MBR), aliado em todo o país ao MBL em objetivos comuns – como o impeachment –, autodenominando-se como apartidários e vigilantes do serviço público. Em Santa Catarina, o MBR ainda é incipiente e chegou há seis meses, com menos de 30 integrantes, principalmente de municípios do litoral. A servidora pública da prefeitura de Balneário Camboriú, Maria Divina Matias, 43 anos, é a representante no Estado e garante que, com o processo de impeachment encaminhado no Senado, a ordem é mirar os acontecimentos locais.

— A limpeza está começando e deve ser contínua. Nosso objetivo maior é continuar fiscalizando os órgãos públicos.

Já o MBL também vai focar na política local, mas com ambições de ir além. Sem tirar os olhos dos acontecimentos em Brasília, as passeatas tendem agora a priorizar os problemas municipais.

— As manifestações serão menores, mas mais voltadas às questões locais — diz Paiva.

A despeito de rechaçar qualquer associação com algum partido, o MBL flerta com a possibilidade de eleger representantes ligados à sua causa nas eleições municipais de 2 de outubro.

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— Pretendemos, sim, continuar com o trabalho, que é fazer com que essa nova classe de representantes das ruas passem para a política. Nossa pauta é o diferencial, apontando para uma filosofia liberal. Temos uma cartilha de propostas. Se o vereador quiser nosso apoio, terá de assinar um compromisso.

Entretanto, segundo o coordenador do MBL em Florianópolis, Ramiro Zinder, depois da votação de admissibilidade do impeachment na Câmara tem se tornado mais difícil mobilizar as massas.

— À medida que o impeachment foi se concretizando, as pessoas perderam o combustível para sair às ruas. O que é uma pena — admite.

Zinder revela que na Capital ao menos dois membros do MBL devem colocar os nomes à disposição para se candidatar à Câmara de Vereadores: ele e Paiva. Mas darão espaço para outros. Alinhados ao pensamento do grupo, que atualmente tem lideranças em 18 municípios, eles vão buscar partidos que comunguem da filosofia do Estado mínimo e das ideias de liberdade individual, social e econômica.

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O próximo passo já está definido: assim como o “pixuleco” dá voltas pelo país para arrebanhar seguidores, Paiva planeja um tour pelo Estado para apoiar a candidatura dos simpatizantes.

É prudente que as passeatas do MBL sejam marcadas para locais e horários diferentes das manifestações da Frente Povo Sem Medo, para evitar a possibilidade de tumulto. Surgida em 2014, dela participam entidades como CUT, Juventude Anticapitalista, União da Juventude Socialista (UJS), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e Intersindical – Central da Classe Trabalhadora.

Diferentemente da Frente Brasil Popular, é constituída somente por setores do movimento social e sindical, sem dividir o protagonismo com algum partido político. Em comum, ambas se engajam em defesa dos direitos dos trabalhadores contra a política econômica recessiva que rende juros altos no mercado financeiro e corta recursos de programas sociais.

— A gente já previa o recrudescimento das relações políticas, com o governo cedendo a pressões da direita, como o pacote de ajuste fiscal e a quebra de direitos da classe trabalhadora — diz Amauri Soares, da direção nacional da Intersindical.

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Com a alcunha de Sargento Soares, ele foi eleito duas vezes deputado estadual pelo PDT (2006 e 2010) e expulso do partido em 2013 por infidelidade: não se aliou aos candidatos endossados pelo partido em São José, sua base eleitoral. Na época, o PDT apoiou o PMDB de Djalma Berger. Hoje, Soares é filiado ao PSOL.

— Os governos do PT foram insuficientes porque não enfrentaram o tripé do poder dominante: o sistema financeiro, os grandes monopólios privados e os latifundiários. Compensou com políticas sociais como Bolsa Família e ProUni. Dilma está sendo derrubada porque o grande capital achou que ela deixou de ser útil — analisa.

A atuação da Frente Povo sem Medo sustenta-se em outro tripé: não reconhecer o governo Temer, reorganizar o povo para resistir e (a longo prazo) obter novas vitórias para poder avançar. Soares traduz o discurso como “resgatar as ruas, tomadas por manifestações com viés mais conservador desde as jornadas pós-junho de 2013”.

— Mas mobilizar a classe trabalhadora para garantir o mandado de Dilma enquanto ela corta direitos é difícil. O segundo mandato foi ainda pior — queixa-se.

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Na prática, serão realizados protestos para marcar simbolicamente o repúdio ao peemedebista guindado indiretamente à presidência, sem “dar à direita a chance de criminalizar os movimentos populares”. Cautela e serenidade, contudo, não quer dizer que ânimos mais exaltados ficarão inibidos.

— Há muita revolta, angústia e ressentimento. A indignação pode gerar consequências mais graves, manifestações espontâneas de grupos para os quais só atos não estão adiantando.

Uma das participantes da Frente Povo sem Medo cuja atuação não se restringe a caminhar e cantar e seguir a canção chama-se Brigadas Populares. A organização nasceu em Minas Gerais no início dos anos 2000 e concentra seus esforços em seis frentes: antiprisional (direitos humanos/revisão judiciária), comunicação (por meio do coletivo Maruim e do Fórum pela Democratização do setor), reforma urbana (ocupações), mulheres (com a Marcha das Vadias), juventude e solidariedade. Em 2011, chegou a Santa Catarina, onde conta com cerca de 70 militantes.

— Enquanto a direita levava um monte de gente para as ruas, a esquerda não teve, não tem e não terá força para barrar o golpe. Faltou trabalho de base para envolver a população — assume o secretário político regional Gabriel Shiozawa Coelho, um jornalista de 23 anos que trabalha em uma assessoria de comunicação, mora com os pais (ambos professores universitários), avó e irmão mais novo e torce pelo Figueirense.

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No Estado, por enquanto o aspecto mais visível das Brigadas Populares é a ocupação Contestado, em São José – participaram também, como coadjuvantes, da ocupação Amarildo, no norte da Ilha, em Florianópolis. Não será surpresa se essa presença aumentar nos próximos meses, baseada na convicção de que a luta deve vir não depois, e sim em paralelo com o despertar da consciência.

— Não dá para detalhar nenhuma ação ou data, mas pretendemos promover mais ocupações, inclusive em prédios públicos, e bloqueio de vias, desde que não tragam risco para ninguém — despista Gabriel.

Tudo indica que a luta não só continua, como será cada vez mais intensa.