Orildo nunca saiu do Brasil, mas sabe que a região costeira da ilha Mount Desert, nos Estados Unidos, chama-se Acadia. E mesmo sem ser médico, sabe que o céu da boca também pode receber o nome de abóbada palatina. Foi o que aprendeu com as palavras cruzadas que resolveu ao longo de seis décadas.

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A cada nova palavras desconhecida que aparecia, ele fazia o registro em folhas de papel A4. Tudo organizadamente datilografado em máquina de escrever e dividido em ordem alfabética. Agora, pouco mais de um mês após sua morte, aos 74 anos, a família quer publicar o dicionário inédito que Orildo produziu sem perceber – um trabalho de uma vida inteira baseada no vício pelas palavras cruzadas.

Orildo João da Silveira deixou pilhas de papel, que seguem na mesma mesa de garagem que ele usava para resolver os desafios. São milhares de definições e informações de geografia, medicina, economia e cultura. Foi só quando começou a organizar a papelada, há poucos dias, que o neto mais velho percebeu a riqueza daquele material: são quase 700 palavras só na letra A e outras cem páginas da letra U.

– Não lembro de meu avô fazendo outra coisa, senão palavras cruzadas. Era a grande paixão da vida dele – conta o despachante Giovani Silveira de Souza, 34 anos.

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Orildo não usava dicionário, não consultava o Google, apenas lia muito. E tinha uma ótima memória. Resolvia quatro revistas por mês, uma do nível médio, outra do difícil e duas do profissional – um nível acima do difícil, voltado apenas para cruzadistas experientes. Vendidos pela banca do outro lado da rua, no Centro de Palhoça, os livros que Orildo resolvia, da editora mineira Recreativa, eram encomendados especialmente para ele, o único que comprava esquemas naquele nível.

– Ele tinha uma cabeça muito boa e era muito raro não saber alguma resposta. Nunca vi nada igual – conta a viúva Valdecy Silveira, 72 anos.

Nos últimos anos, ele se dedicava só a isso, desde a hora em que acordava, às 7h, até a hora de ir dormir, entre 22h e 23h. Sentava na garagem de casa, de onde avistava o movimento da Praça 7 de Setembro, no coração da cidade, e lá permanecia durante todo o dia. Não parava nem quando ia ao médico, ou quando havia festas de família. Foi assim também nos oito dias em que ficou na UTI. Até no dia em que morreu ele resolveu palavras cruzadas.

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– Não há como explicar. A questão toda se resume em um fascínio pelas palavras – descreve Giovani.