Santa Catarina tem, a cada mil habitantes, ao menos um em situação de rua. Ao todo, são 9.065 pessoas sem moradia: é a oitava pior condição entre os estados do país, ainda que seja o décimo mais populoso. O cenário consta em um relatório publicado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) no última dia 15, que ainda lista aparatos de atenção a esse público no país, melhores estruturados ou iguais à rede de apoio catarinense mesmo em localidades com menos pessoas nas ruas.
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O MDHC considera no relatório apenas as pessoas em situação de rua que estavam identificadas em dezembro de 2022 pelo Cadastro Único (CadÚnico), que monitora brasileiros sob vulnerabilidade e viabiliza a eles benefícios sociais, como o Bolsa Família. O documento reforça que há no país, portanto, pessoas ainda mais fragilizadas, sem moradia e invisíveis até para os registros.
A quantidade de pessoas nas ruas em Santa Catarina é maior do que a população de 155 municípios no estado. A situação mais grave no país é a do estado de São Paulo, com 95.195 habitantes sem moradia. Em todo o Brasil, são 236.400 pessoas em situação de rua.
Santa Catarina conta atualmente, ainda de acordo com o relatório, com nove unidades do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, o Centro POP, número igual ao que existe em Pernambuco, por exemplo, onde há, contudo, uma menor quantidade de pessoas sem moradia.
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Há ainda cinco equipes catarinenses do Consultório na Rua, que fazem atendimento itinerante de saúde à população de rua. O número é menor que o de Goiás (11), Pernambuco (9), Espírito Santo (8), Pará (7) e Alagoas (6), todos eles com menos pessoas na rua cadastradas pelo CadÚnico que Santa Catarina.
Florianópolis na rua
O desequilíbrio na comparação com outras localidades se repete em Florianópolis: é a décima cidade brasileira com mais gente na rua, ainda que seja apenas a 39ª mais populosa do país. O município tem 2.020 pessoas sem moradia registradas pelo CadÚnico, segundo o relatório, o equivalente a quase quatro habitantes nessa condição para cada mil que vivem na capital de Santa Catarina.
Florianópolis tem um Centro POP e um grupo do Consultório na Rua. Quanto à primeira estrutura, outras cinco capitais com menos pessoas na rua têm mais equipamentos iguais. Já sobre as equipes de saúde, há 11 capitais brasileiras melhor equipadas nesse sentido ainda que com menos habitantes sem moradia.
Natural de Florianópolis, Fábio Antônio Silveira, de 37 anos, vive em situação de rua na cidade há pouco mais de um ano e diz contar com o apoio público que entende ser necessário. Ele afirma preferir dormir, no entanto, em uma barraca improvisada nos fundos de uma antiga sede do Tribunal de Contas do Estado (TCE-SC), no Centro, do que no abrigo municipal do Complexo Nego Quirido.
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— Eu vim para rua porque eu quis mesmo, mas não passo fome. Pego sempre uma marmita ali [no Restaurante Popular], fome não passo. E prefiro ficar aqui porque ali [na Passarela da Cidadania, no Complexo] tem muita coisa de roubo, briga. Aqui tenho as minhas coisas, meu trabalho — diz Fábio.
A escolha por viver nessa condição se deu, segundo ele, por ser dependente químico, com altos e baixos em relação ao crack desde os 18 anos. Fábio chegou a se ver livre da droga por seis anos, após uma segunda internação, mas acabou voltando mais uma vez ao vício e às ruas, nas quais levanta um dinheiro cuidando de carros e tem a companhia agora do Corajoso, um cachorro ainda filhote.
— Essa doença nossa é traiçoeira. Na primeira queda, na primeira tristeza, você volta para ela — diz.
Também em situação de rua em Florianópolis, o paulista Luís Anderson Souza, de 44 anos, tem familiares no Sul de Santa Catarina, mas optou por seguir na Capital, onde diz encontrar o acolhimento que precisa.
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Inscrito no CadÚnico, ele recebe R$ 600 do Bolsa Família e faz peças de artesanato. Além disso, ele diz contar com a rede de apoio da prefeitura para se alimentar e cuidar da higiene pessoal, com exceção também do abrigo para dormir, que prefere não utilizar.
— Deus sabe que a gente tem que viver com um trabalho, uma casa, uma higiene melhor, uma alimentação melhor, com mais dignidade. Mas a gente faz o que tem forças para fazer — relata Luís, sentado em um banco na Praça XV de Novembro, sobre o motivo de seguir em situação de rua.
A prefeitura da Capital, sob gestão Topázio Neto (PSD), afirma que a quantidade de pessoas em situação de rua identificada pelo Ministério dos Direitos Humanos não é o ideal, por considerar que ninguém deveria viver nessa condição. Ponderou ainda que esse número do relatório não é concreto, já que esse público está em constante movimento e transita entre as cidades da Grande Florianópolis.
A Secretaria de Assistência Social no município ainda listou as estruturas com as quais oferece serviços e oportunidades a essa população (Restaurante Popular, a Passarela da Cidadania, Hotel Social e Centro POP) e anunciou desenvolver novas ferramentas para reinserção das pessoas sem moradia no mercado de trabalho, a fim de que elas possam alcançar a emancipação financeira e social.
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“Hoje são ofertados nos equipamentos socioassistenciais cursos de costura e barbearia, e oficinas ligadas à alimentação, saúde, e mercado de trabalho. A Prefeitura também oferece serviços como a Educação de Jovens, Adultos e Idosos (EJA), Instituto Geral de Oportunidades de Florianópolis (Igeof), Floripa Mais Empregos, e atendimento médico em Centros de Saúde e Consultório na Rua”, escreveu, em nota.
Outras cidades catarinenses
O estudo do MDHC não traz dados de outros municípios catarinenses. Na maior cidade do estado, contudo, a própria prefeitura de Joinville estima ter entre 400 e 500 habitantes em situação de rua. O número foi identificado a partir de uma pesquisa de diagnóstico social sobre essas pessoas de maio deste ano, solicitada por determinação do Ministério Público catarinense (MPSC) em uma ação penal.
Para atender essa população, o município tem ações em frentes como saúde, alimentação, higiene pessoal, educação profissional e trabalho, segundo a Secretaria de Assistência Social (SAS) local.
Na cidade, há um Centro POP como referência para isso, onde a pessoa em situação de rua recebe lanche e roupas. Ela também passa no local pela escuta qualificada com uma equipe técnica de psicólogos e é encaminhada para a rede de serviços, com a qual pode buscar documentação e o restabelecimento do vínculo familiar. Ali também é feito o CadÚnico para a acesso a benefícios.
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Outra alternativa é o Restaurante Popular, que tem duas unidades em Joinville. Elas oferecem café da manhã, almoço e jantar gratuito. O espaço ainda fornece alimentação para outros interessados, como estudantes, idosos e a população em geral, mas mediante uma taxa que varia entre cada perfil.
No inverno, a SAS oferece vagas para acolhimento às pessoas em situação de rua conforme a demanda, provendo também acesso a banho e produtos de higiene pessoal. Além dessas ocupações consideradas emergenciais pela gestão Adriano Silva (Novo), a prefeitura dispõe de outras 105 vagas, conforme dados de junho, que, atualmente, já são utilizadas por pessoas acolhidas nas casas de passagem.
Já na maior cidade do Vale do Itajaí, não há uma estimativa de quantas pessoas estejam em situação de rua, embora a prefeitura de Blumenau mantenha um serviço especializado em abordagem social.
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Esse atendimento é feito de segunda a sexta-feira, das 5h30min à 1h, e aos finais de semana, das 8h às 20h. Os profissionais atuam mediante busca ativa e também se pautam pelas solicitações que chegam por telefone — 156 na opção 2, (47) 99945-9630 e (47) 3381-6510.
Em cumprimento à legislação brasileira, o serviço não faz a retirada compulsória de pessoas em situação de rua. A equipe identifica, cadastra e incentiva a aceitação dos serviços disponíveis.
Caso a pessoa abordada aceite o acolhimento, os assistentes sociais elencam as necessidades mais urgentes, como solicitação de novos documentos ou atendimento médico. Ela pode ser também encaminhada para outros serviços disponíveis na cidade: o Abrigo Municipal (Amblu), a Casa Elisa (abrigo para mulheres com medidas protetivas) e um Centro POP.
A unidade de referência funciona de segunda a sexta-feira, das 7h às 16h. Já o abrigo municipal fica aberto 24 horas por dia. Os dois locais oferecem refeições, local para higiene pessoal, roupas e apoio técnico com psicólogos, educadores e assistentes sociais. Paralelamente ao serviço de acolhimento, a equipe técnica também faz contato telefônico com familiares para tentar reconstruir o vínculo.
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Governo de SC diz se preocupar
Também ao NSC Total, a Secretaria de Assistência Social catarinense (SAS-SC), vinculada à gestão Jorginho Mello (PL), comunicou avaliar que a quantidade de pessoas nas ruas do estado é preocupante.
— É um número, sim, com o qual a gente deve se preocupar. A população em situação de rua é uma das pautas principais aqui da nossa Secretaria. Este ano, em especial, a gente tem se dedicado ao olhar sobre essa população, inclusive restituindo o nosso comitê integrado da população em situação de rua, que vai contar com os demais atores que atendem essa população, como a saúde, segurança e educação — diz a diretora de Assistência Social da pasta, Gabriela Dornelles, conforme divulgado via assessoria.
Ela argumenta que o menor aparato de apoio em relação a outras localidades se deve ao perfil dos municípios catarinenses, que, por serem em sua maioria pequenos, não teriam recursos nem população de rua o bastante para se viabilizar um centro especializado a essas pessoas.
— Quando a gente pensa na necessidade de equipamentos especializados, que é o Centro POP, eles são característicos de municípios de grande porte. Com o novo Censo, Santa Catarina deve ter 19 municípios assim. Se a gente considerar esse número, estamos falando de 50% desses municípios com um Centro POP. Nos demais municípios, se desenvolve mais o serviço de abordagem social — explica a gestora.
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Ela avalia ainda que o problema é consequência da promessa de oportunidades colocada sobre Santa Catarina, que atrai a cada ano mais pessoas diante de bons indíces de emprego. Também diz que, associado a isso, o perfil de pessoas nas ruas tem mudado no estado, com mais famílias.
— Estamos buscando fortalecer esse enfrentamento para que a gente possa oferecer oportunidade e dignidade, que é o que essa população precisa — afirma Dornelles.
Censo de População de Rua
Representante catarinense do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), Daniel Paz dos Santos diz concordar sobre a mudança no perfil das pessoas nas ruas, cada vez com mais mulheres e idosos. Ele avalia que a pandemia de Covid-19 foi crucial para isso ao despejar famílias inteiras.
— A pandemia trouxe o dobro de pessoas que estavam em situação de rua. No nosso estado, eram pouco mais de 2 mil pessoas na rua cadastradas no CadÚnico. A pessoa não arruma trabalho e vai para rua. São famílias inteiras, muitos idosos na rua. É triste demais ver as pessoas acima de 60 anos na rua, sem amparo algum, ver a violência contra as mulheres, a institucional e a das ruas — diz Daniel.
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O ativista pondera, contudo, entender que há mais esforço público em reprimir essas pessoas, com obras de arquitetura hostil (como pedras bicudas embaixo de viadutos) e abordagens ostensivas de forças de segurança, do que em acolhê-las, o que poderia ser feito com maiores redes de apoio.
— Eu acho que, no nosso estado, falta muito para se dizer que é feito alguma coisa na política pública de situação de rua. Na Grande Florianópolis, por exemplo, não temos nada: não temos consultório de rua, cozinha popular, Centro POP — diz Daniel, citando as cidades vizinhas à Capital.
Ele defende que, em resposta a isso, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) faça um Censo específico sobre a população de rua, uma vez que, ao negarem investimentos em redes de apoio, muitos municípios teriam como argumento a invisibilidade dessas pessoas nos registros.
— Se a gente não existe para o IBGE, a gente não existe para a política pública. Agora se tem essa pesquisa, esses dados, a gente começa a dar atenção a isso — diz Daniel.
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A proposta do ativista é repetida também pelo relatório do Ministério dos Direitos Humanos. Na avaliação da pasta, um recenseamento serviria tanto para se chegar a número fiel de pessoas nas ruas quanto para se ter um retrato mais detalhado delas, que explicasse, por exemplo, as razões pelas quais estão nas ruas, o que viabilizaria políticas públicas de resposta mais certeiras.
“A realização de um Censo da População em Situação de Rua auxiliará nesse diagnóstico referente à proporção das pessoas em situação de rua que, de fato, está cadastrada e recebendo benefícios da assistência social. Além disso, o fortalecimento da busca ativa e a ampliação de serviços voltados à população em situação de rua será primordial”, escreve o relatório.
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