O sistema de saúde que não organiza o seu atendimento aos pacientes crônicos na atenção primária tende a gastar mais no atendimento especializado no futuro
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Se você perguntasse a um homem antigo do que ele iria morrer, é bem provável que ele atribuísse sua morte a um desígnio divino.
Desde a Idade Média até meados do século 20, doenças infecciosas como a sífilis, a tuberculose e a gripe passaram a ser os grandes algozes da humanidade. No Brasil, as doenças infecciosas deixaram de ser a principal causa de morte ao final da década de 60, quando as doenças crônico-degenerativas tomaram a dianteira (transição epidemiológica), posição que ocupam até hoje.
Portanto, caro leitor, se você tem mais de 40 anos, é estatisticamente provável que seu atestado de óbito contenha na alínea da causa-base uma destas três possibilidades: acidente cerebrovascular (AVC); infarto agudo do miocárdio; neoplasia. As duas primeiras têm como base biológica a aterosclerose, que se trata nada mais, nada menos do que um processo inflamatório que se inicia na infância e culmina com o enrijecimento e entupimento das paredes internas (ateroma) da nossa árvore arterial cerebral e coronariana. Estes ateromas deixam os vasos sem fluxo de sangue, levando à morte tecidual (infarto).
Existem dois tipos mais comuns de AVC: o isquêmico (artéria “entupida”; 2/3 dos casos) e o hemorrágico (artéria rompida). Saindo do entendimento do mecanismo, vamos analisar a carga populacional da doença aterosclerótica. Somos 7 bilhões de pessoas neste mundo cão morrendo a uma velocidade de 1% ao ano.
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O AVC é responsável por 10% deste 1%, ou seja, são 7 milhões que morrem por AVC no mundo por ano. Renda e educação distribuem desigualmente esta cifra no mundo, pois 2/3 destes ocorrem em países de baixa renda e média renda. e também nas áreas mais pobres de países ricos (stroke belts).
Em 2012, o Registro de AVC de Joinville, uma base de dados populacional, pública e prospectiva identificou 459 casos de primeiro episódio de AVC, 303 casos recorrentes, 130 casos de “ameaço de derrame” (ataque isquêmico transitório) e uma taxa de mortalidade de 20% em 30 dias (150 casos). Cada AVC isquêmico tem uma internação média de 12 dias e custa em média (diagnóstico, drogas, hotelaria, salários de pessoal) R$ 9 mil. Entre os inúmeros custos indiretos após a alta hospitalar, pacientes pós-AVC se aposentam, em média, 13 anos antes.
Estes números são a moldura do quadro que engloba a prevenção primária, secundária, assistência aguda hospitalar e reabilitação pública (caótica em nosso meio). É intuitivo se perceber que o número de primeiros eventos de AVC que ocorrem por ano (incidência) traduz a qualidade da prevenção primária das seguintes condições de saúde do adulto: hipertensão arterial, diabetes, colesterol elevado, tabagismo, sedentarismo, fibrilação atrial (um tipo de arritmia cardíaca que leva à embolia do coração aos vasos cerebrais) e a obesidade.
O número de eventos recorrentes traduz a qualidade da prevenção secundária. Sabemos que, entre 1995 e 2005, Joinville teve uma queda de 1/3 na incidência de AVC, fruto da alavancagem do IDH das classes econômicas E até C. Entretanto, este ano temos alguns dados preocupantes: de 2005 a 2011, a incidência de primeiro AVC isquêmico parou de cair. Efeito teto? Baixa resolutividade da rede de assistência pública? Piora do investimento na saúde? Baixa aderência ao tratamento de doenças crônicas? Creio que o buraco é mais embaixo. Assim como existe um stroke belt no vale do Mississipi (EUA), temos também uma distribuição assimétrica de casos dentro de Joinville.
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A incidência no Aventureiro é de 82 casos por 100 mil pessoas. No Fátima, são 85 casos/100 mil. Isto é o dobro da incidência em Pirabeiraba (42/100 mil). Por que isto ocorre? A média de idade para o primeiro AVC em Joinville é de 61 anos, e 1/3 dessas pessoas são analfabetas ou têm menos de quatro anos de educação formal. Menos educação, menos compreensão de saúde e doença, menos acesso à informação, menos aderência à prescrição médica. Os gráficos comparam as proporções de uso de medicações para hipertensão arterial, diabetes e dislipidemia entre os anos de 2005-6 versus 2010-11. Foi considerado uso regular quando a pessoa, por exemplo, sabia que já tinha hipertensão, que tomava remédio, que tomava todo os dias e que sabia o nomes dos seu remédios.
O primeiro gráfico são dados da prevenção primária (antes do primeiro AVC) e o segundo são dados da prevenção secundária (no segundo ou terceiro AVC). Os pontos destacados em colchetes mostram as variações matematicamente confiáveis. Ou seja, estamos avançando no tratamento do diabetes e do colesterol. Não avançamos no controle da hipertensão, na prevenção de embolias do coração, não reduzimos tabagismo e, de quebra, estamos mais obesos.
Norberto Cabral, MD, Ph.D., é médico neurologista e professor de neurologia do curso de medicina da Univille. É médico neurologista da Clínica Neurológica de Joinville.
Marlene Bonow de Oliveira é formada no curso de nutrição pela Universidade Federal de Santa Catarina, especializanda em gestão em saúde pelo Programa Nacional de Formação em Administração Pública e atua na Secretaria da Saúde de Joinville.
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