Era uma sexta-feira ensolarada, perto das 12h, sol a pino e o calor se fazendo presente quando peguei o celular. Na sacada do apartamento, onde soprava uma brisa que refrescava o ambiente, liguei para o número com o DDD 51. Alguns toques depois, do outro lado da linha ouvi, em alto e bom tom: “Alô!”. A voz era de uma senhora supersimpática e atenciosa. Lúcia é o nome dela. E há mais de cinco décadas ela compartilha a vida ao lado de um dos maiores nomes da cultura no Brasil: Luis Fernando Verissimo.
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Apresentei-me e disse que gostaria de conversar com Verissimo, para fazer a entrevista a seguir. Bastou eu terminar a frase com um “é possível?”, para ouvir uma recomendação:
– Olha, sou casada há 56 anos com ele, e acho que você não vai conseguir tirar muita coisa dele por telefone, não. Recomendo você enviar as perguntas por e-mail. Vai ser melhor.
E assim o fiz. Entre os demais afazeres da jornada de trabalho naquele dia, formulei as perguntas e enviei para o endereço que me foi passado. Dois dias depois, as respostas estavam na caixa de entrada do meu e-mail. Escrevo esse preâmbulo para exemplificar o jeito reservado de um dos maiores escritores, humoristas, cartunistas, roteiristas, autores de teatro e romancistas do país.
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Em meio à pandemia do coronavírus, o gaúcho de 83 anos tem seguido as orientações das autoridades e respeitado a quarentena. Diz que sente falta dos amigos, dos restaurantes e cinemas que gosta de frequentar. E resume o momento em uma palavra:
– Paciência.
Prepara-se para o lançamento de um novo livro de crônicas no mês que vem. Isso se a editora não mudar os planos. Questionado sobre os aprendizados da quarentena, é ácido:
– Aprender, mesmo, nada. Estamos sendo obedientes, esperando que os homens saibam o que estão fazendo e que tudo dê certo. A questão é se alguém sabe o que está fazendo.
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Lamenta a postura do presidente da República e chama os profissionais da saúde de heróis modernos. Perguntado sobre o papel da literatura neste momento, aproveita para refletir sobre o jornalismo:
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– O papel da literatura é o de sempre, o de exercitar a inteligência, e o do jornalismo é de tentar dar um sentido ao que, como agora, parece não ter nenhum.
Futebol, música, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Rubem Fonseca e o futuro pós-pandemia também estão na pauta. Confira na entrevista a seguir:
Como o senhor tem passado a quarentena? Do que sente mais saudade de fazer?
Quem está sofrendo com a quarentena mais do que a Lucia e eu é nosso filho Pedro, que tinha uma vida social mais intensa do que a nossa. Mas, claro, também sentimos falta dos amigos, e dos restaurantes e cinemas que gostávamos de frequentar. Paciência.
Vem novidade por aí, por conta da pandemia? Algum novo livro ou outro trabalho?
Um livro de crônicas estava para ser lançado agora em maio. Não sei se a editora vai manter o mesmo plano, ou esperar que a situação melhore. As crônicas do livro são todas pré-pandêmicas.
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O que o senhor mais aprendeu com o isolamento social?
Aprender, mesmo, nada. Como estamos seguindo a orientação de nos isolarmos para enfrentar o coronavírus, estamos sendo obedientes, esperando que os homens saibam o que estão fazendo e que tudo dê certo. A questão é se alguém sabe o que está fazendo.
Qual é o papel do humor e da literatura em um momento tão duro como este que estamos vivendo?
Pois é, é duro fazer humor com centenas de pessoas morrendo à sua volta todos os dias. O papel da literatura é o de sempre, o de exercitar a inteligência, e o do jornalismo é de tentar dar um sentido ao que, como agora, parece não ter nenhum.
Como vê o papel do presidente da República nesta crise da saúde pública?
Lamentável.
Na última semana, o Brasil se despediu de dois grandes nomes reconhecidos na literatura nacional: Luiz Alfredo Garcia-Roza e Rubem Fonseca. O que o senhor pode falar de cada um deles?
O Rubem e o Roza faziam o mesmo tipo de literatura, de gênero, o policial nos dois casos, mas com outras pretensões e o mesmo valor literário. Acho que o Rubem era melhor escritor, mas o tempo e a posteridade talvez favoreçam o Roza.
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No combate à pandemia da Covid-19, diariamente vemos crescer o número de médicos, enfermeiros e profissionais da área da saúde acabam sendo infectados. Qual recado o senhor mandaria para esses profissionais?
São heróis modernos, lutando ao mesmo tempo contra o vírus mortal e as carências de uma sociedade desigual e despreparada, igualmente assassina.
O senhor adora futebol. Tem assistido aos jogos antigos da Seleção Brasileira reprisados na TV? Se sim, o que sente ao assisti-los?
Apesar da saudade, não tenho visto as repetições dos jogos históricos, que acabam sendo exercícios de nostalgia melancólica, que só aumentam as tristezas do momento.
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O senhor também é um músico de reconhecida qualidade. Tem aproveitado o isolamento social para tocar ou até mesmo compor?
O “reconhecida qualidade” é gentileza sua. Nunca cheguei a dominar o saxofone, que agora está aposentado, junto com outros sonhos vãos e ilusões perdidas.
Em um exercício de imaginação, como será viajar depois da Covid-19?
Não posso me imaginar entrando em um avião para uma viagem de muitas horas, como fazia antes. Talvez a quarentena esteja sendo uma espécie de treinamento para viver nesse futuro com horizontes mais modestos, e de viagens só até a esquina.
O senhor acha que a humanidade vai melhorar depois disso tudo?
Acho que estamos vivendo uma espécie de purgação, que marcará algumas gerações. Se seremos purgados para o bem ou para o mal, não sei.
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