Não se visita impunemente o memorial erguido no bairro Once, na periferia de Buenos Aires, em homenagem aos 194 jovens que morreram no incêndio na boate República Cromañón.

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Pendurados em varais, fileiras de tênis amarrados por cadarços podem consternar mais do que as cruzes de cemitérios. É que não revelam apenas o luto, mas a dilaceração imposta por vidas abreviadas.

Intitulado santuário, o local reverencia “anjos do rock”, como são conhecidos os rapazes e as moças que foram asfixiados pela fumaça tóxica expelida das paredes da República Cromañón naquela noite de 30 de dezembro de 2004. Havia 2.811 pessoas na casa noturna – 194 morreram, 700 se feriram, dezenas delas com gravidade.

O santuário surgiu espontaneamente, próximo ao prédio da Cromañón, e não para de se expandir. Num dos muros, familiares improvisaram oito sepulcros, idênticos a gavetas mortuárias. Colocaram fotos, epitáfios, inclusive escudos dos times de futebol dos afetos que se foram. Num dos carneiros, uma garrafa de cerveja Quilmes – talvez a preferida do morto – abriga uma flor de plástico.

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A dona de casa Tania Caballero, 37 anos, já atravessou o memorial outras vezes a caminho da parada de ônibus. Não por intenção, mas por ser o trajeto mais curto. Em todas, olhou para os tênis suspensos por cordões – alguns já castigados pelo vento e pela chuva, outros de solado queimado, o que evidencia o desespero dos seus donos na tentativa de sair da boate em brasas.

– Chama a atenção, porque foi uma imprudência e me preocupo com os meus cinco filhos – comenta Tania.

O que aconteceu na República Cromañón repetiu-se nos mesmos detalhes na boate Kiss, em Santa Maria, nove anos depois. O advogado José Iglesias, 61 anos, pai de uma das vítimas (Pedro Tomas, que estudava Jornalismo), enumera as coincidências que unem as duas arapucas. Na danceteria argentina, não havia plano de segurança, nem fiscalização de bombeiros ou de autoridades municipais.

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Também não existia porta de emergência. Responsável por ações na Justiça em favor dos familiares, Iglesias diz que a saída do prédio foi trancada por seguranças, a cadeado e correntes, quando os frequentadores tentaram fugir das chamas. Quando os extintores foram acionados, não funcionaram – exatamente como ocorreu em Santa Maria.

– O botão de alarme estava travado por um chicle mascado – lembra Iglesias, que atua com o também advogado Patricio Poplavsky.

Turistas tiram lições no Once

Assim como na boate Kiss, o sinistro foi causado por um integrante da banda musical, no caso o grupo Callejeros, que soltou rojões contra o teto forrado por espuma emborrachada. O artefato tem nomes diferentes – é “bengala” na Argentina, sputnik no Brasil -, mas provocou o mesmo efeito: incendiou a goma sintética das paredes, a qual liberou emanações pestilentas.

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Uma das consequências da Cromañón pode servir de alerta às vítimas de Santa Maria. Iglesias avisa que sobreviventes sofreram lesões no corpo e na mente. Tiveram de se submeter a tratamento psicológico, anos depois, por ficarem em pânico quando estão em locais fechados.

– As sequelas perduram até hoje – diz o advogado, lastimando que parte das terapias não se completou por falta de assistência.

O santuário tornou-se um local de peregrinações – apesar das patotas de assaltantes que rondam as imediações da praça e do terminal de ônibus no bairro Once. Há quem vá rezar, levar flores, acender uma vela. O turista chileno Renato Wastavino, 55 anos, não se limitou a ver as belezas de Buenos Aires. Foi ao memorial com a mulher e os dois filhos. Professor por ofício, viaja para aprender.

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– Depois do que aconteceu aqui, oito casas noturnas foram fechadas em Santiago do Chile, onde moro – conta Renato.

O chileno ficou impactado com o renque de tênis de diversas cores e marcas. Comoveu-se com algumas frases gravadas no cimento, como se fossem lápides. Uma delas expunha a dor de uma mãe: “Tua alma viajará pelos céus, navegará os mares e, quando se fará justiça, baixará à terra”.

Um imenso mural, com a lista das 194 vítimas da Cromañón, desponta perto do santuário. Pedestres estancam para contemplar os nomes dos proprietários dos tênis – agora encardidos e se esfarrapando.

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À espera por indenização

Familiares das vítimas da República Cromañón esperam, passados nove anos, que a justiça argentina decida sobre as indenizações e reparações.

O valor para cada uma das 194 mortes deve oscilar em torno de US$ 200 mil – cerca de R$ 420 mil. Para os 700 feridos, o cálculo dependerá da gravidade e das sequelas.

Um dos advogados das famílias e pai de uma das vítimas, José Iglesias diz que não há data para o julgamento das indenizações. Prevê que as causas cíveis serão demoradas, devido ao número de vítimas e à lentidão do Judiciário. Os valores serão analisados levando-se em conta a idade dos mortos e as perspectivas de futuro dos jovens.

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– Será um processo longo – avisa.

Na esfera criminal, as ações tiveram um desfecho: 23 dos responsáveis pela tragédia estão na cadeia. Em dezembro, depois de inúmeras apelações, a Justiça confirmou o cumprimento das penas. A mais alta, de 10 anos e nove meses, foi aplicada ao gerente da República Cromañón, Omar Chaban.

Entre os condenados, estão oito integrantes do Grupo Callejeros (por soltar rojões dentro da boate) e autoridades policiais e da prefeitura, acusadas de omissão e falta de fiscalização. Familiares pretendiam incriminar mais cem funcionários públicos, que não fiscalizaram a boate entre 1997 e 2004. A Cromañón já operava clandestinamente antes do incêndio.

Os argentinos jamais se conformaram. O então prefeito de Buenos Aires, Aníbal Ibarra, foi submetido a juízo político em março de 2006. Tornou-se o primeiro chefe do governo portenho a ser destituído pela Sala Julgadora do Legislativo, por 10 votos a quatro. Além do afastamento, por inépcia e omissão, Ibarra foi inabilitado por 10 anos. Como autoridade máxima, foi responsável pelos atos dos subordinados.

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Pelo menos 15 pais ou mães não receberão as indenizações que estão em julgamento. Morreram a partir de 2004, de doenças potencializadas pelo desgosto e pela saudade. No santuário em homenagem às vítimas, no bairro Once, perto da boate República Cromañón, uma placa lembra Mariana de Avendaño e Cristina de Zapata, que não resistiram à dor de enterrar seus rebentos.

A mobilização por justiça e para que os responsáveis cumpram integralmente as condenações é mantida pela organização Que no se repita, com site na internet. Familiares e sobreviventes também são solidários a outros movimentos. No dia 22, ajudaram nos protestos pelo primeiro ano da Tragédia do Once – o acidente ferroviário que matou 51 pessoas em Buenos Aires.

Maria Matilde Mangone, 40 anos, foi uma das que se juntaram à multidão na Praça de Maio, diante da Casa Rosada, exigindo punição aos culpados e mais segurança no transporte público. Recordou que o marido, Gerardo, morreu asfixiado no incêndio da boate por culpa de empresários, policiais e fiscais.

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– Não foi uma tragédia, mas um crime social. Está provado que as autoridades sabiam das condições da Cromañón, mas nada fizeram – destaca.

Patricio Hortal conseguiu escapar dos rolos de fumaça tóxica. Não deveria estar na boate, tinha apenas 15 anos na época. Pôde salvar um amigo que desfalecia, mas viu outros tombarem. Desde então, participa das manifestações e tenta confortar quem se engolfou no luto.

– Estamos juntos, com as famílias das vítimas, em qualquer situação – diz Patricio.

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