O comandante guerrilheiro estava furioso. Fitou-me com os olhos em chispas, apertava o cano da metralhadora com a mão e repetia, aos gritos esganiçados: – Espiones de la dea! Aquilo me confundia ainda mais. Tentava raciocinar, consultava o meu arquivo mental das sutilezas da língua espanhola: o que seria “de la dea”? Ele continuava a me acusar de espionagem, cada vez mais agressivo. Os outros guerrilheiros observavam com interesse, esperando o desfecho, cada um com seu fuzil. Então compreendi: o comandante se referia ao DEA, o Departamento Antidrogas dos Estados Unidos. – Aqui nunca vieram jornalistas, só espiões do DEA! – repetia, berrando. Nos ferramos, pensei. Esse cara vai nos fuzilar aqui mesmo. Ou, na melhor das hipóteses, nos seqüestrar. Podia fazer uma coisa ou outra sem dificuldades. Eu, o fotógrafo José Doval e nosso amigo William Loaiza nos encontrávamos num lugar em que nada mais existe a não ser as Farc e os simpatizantes das Farc. Santa Lucia, 4 mil metros Andes acima, é chamada, na Colômbia, de “O Santuário da Guerrilha”. E como havíamos lutado para chegar até lá. No domingo anterior, já tínhamos tentado localizar guerrilheiros. Contatei com o William, que é repórter do El Tiempo em Tuluá, cidadezinha a 100 quilômetros de Cali, e ele, com a típica gentileza colombiana, nos acompanhou o dia inteiro, desde o alvorecer até o fim da tarde, pelos pequenos povoados das montanhas. Falei com muita gente, colhi ótimas histórias, mas não encontrei um guerrilheirinho, sequer. No dia seguinte, madrugamos de novo para ir a Manizales. Dividimos com a equipe da Gaúcha, a japonesa Kiomi, também jornalista, e o Wellington Campos, da Itatiaia, um microônibus, coisa que em espanhol é chamada por um nome impublicável no Brasil. Como explicarei, para não afetar suscetibilidades? Bem, você sabe que ônibus, na língua de Cervantes, se pronuncia “buce”. Logo, um ônibus pequeno é… Isso mesmo: vagina. Pois entramos na vagina logo de madrugada e não paramos de fazer trocadilhos. Que aquela vagina estava suja, que era apertada demais, que estava com um cheiro azedo, que não agüentávamos mais ficar dentro da vagina. Assim por diante. Até que uma hora o Wellington percebeu que o nosso motorista colombiano ficara chateado: que tanto os brasileiros reclamavam da sua vagina? O Marco Antônio Pereira contava piadas que nos faziam soluçar de rir, o Sérgio Guimarães obrigou a Kiomi a falar em japonês o nome de todos os órgãos genitais possíveis e até alguns impossíveis, o que ela fez obedientemente, mas rubra de timidez oriental. Estávamos contentes, prontos para conhecer uma nova cidade e ver outra bela vitória do Brasil. CORTA! A volta foi algo melancólica. Paramos num restaurante para comer um bife e beber uma cachaça colombiana, subimos de novo na vagina e passamos a reclamar amargamente da Seleção. Só paramos quando a Kiomi começou a cantar suavemente em japonês. Oh, aquilo nos amoleceu a alma. A música japonesa é uma carícia. Ida e volta na vagina, foram 24 horas. Extenuante, mas eu ainda não tinha o meu guerrilheiro. Tomei um banho, dormi uma hora, chamei o Doval e fomos outra vez para a Cordilheira Central dos Andes. Começamos a subir. Não por uma estrada, mas por um caminho de areia e pedra escavado na montanha, um paredão vertical de um lado, o abismo negro do outro, a selva fechada em volta. Fomos cruzando pelos lugarejos assolados pela guerra, falando com pessoas, reunindo histórias, mas sem encontrar os guerrilheiros. Naquela selva, cerca de 400 corpos estão enterrados, vítimas da guerra da Colômbia. Olhávamos em volta, desconfiados, continuávamos a subir, e nada da guerrilha. À noite, depois de 10 horas de viagem, chegamos a um lugarejo chamado Barragán, um ermo amedrontado pelos guerrilheiros e pelos paramilitares. Em Barragán, a guerrilha determinou toque de recolher – depois das 18h, ninguém sai às ruas. Estávamos a 3.300 metros de altitude, tínhamos passado por 15 montanhas, e ainda sem guerrilheiros. Era preciso ir a um último povoado, Santa Lucia. Vamos?! Fomos. Tocamos o carro pela montanha, mas, no meio do caminho, havia uma pedra. Ou várias. O tanque de gasolina furou. Olhamos sob o carro, à luz da lanterna, e vimos a gasolina chover do tanque. Era imperioso voltar já. Ou ficaríamos perdidos no meio da montanha, no escuro absoluto, no frio, sujeitos sabe lá a que perigos. Despencamos morro abaixo. Mirávamos o mostrador de gasolina, que batia no fundo, e para frente, até onde os faróis iluminavam, ansiosos para divisar o povoado e a salvação. Parece coisa de filme. No primeiro metro do lugarejo, o carro morreu. Juan Carlos, o nosso motorista, suspirou: – Diós mio! O Doval soltou um palavrão. Só que em Barragán não existe mecânico, nem solda, nem gasolina, nem lugar onde um forasteiro possa passar a noite. Batíamos nas casas, pedindo ajuda. Os moradores não abriam as portas ou, se as abriam, mal falavam conosco, assustados que estão com a guerra. Até que lembrei da Santa Madre Igreja Católica. Conseguimos alguns catres e passamos a noite fria pensando no que estaria reservado para nós. Ninguém dormiu direito. De madrugada, eu, o Doval e o William nos empoleiramos num caminhão de leite e tocamos para Santa Lucia. Queríamos os guerrilheiros. Achamos. E agora o comandante nos acusava ferozmente de sermos espiões, gritando e apertando o cano da maldita metralhadora. Que fazer? Arrisquei um lance. Engatei meu espanhol e mandei ver: – Comandante, eu venho de um Estado que é governado pelo Partido dos Trabalhadores, um partido de esquerda no Brasil. Em setembro do ano passado, o meu governador recebeu um representante das Farc, e este representante foi tratado como chefe de Estado. Como embaixador. Desde então, o povo do meu Estado passou a se interessar muito pela situação da Colômbia, da qual ninguém sabia nada. Por isso estou aqui, para contar o que acontece com o povo da Colômbia. Encerrei o discurso de fronte erguida. O comandante olhou nos meus olhos. Largou a metralhadora. Apoiou o cotovelo na porta da caminhonete. Disse: – O que você quer perguntar? Olhei para o céu sobre os Andes. Roguei: bendito seja, Santo Olívio Dutra. Na volta ainda tivemos mais confusões, mas eu tinha meus guerrilheiros. Leia amanhã o resultado dessa história toda, por favor. Deu um trabalhão pra fazer.

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David Coimbra escreveu diretamente de Santa Lucia, Colômbia david.coimbra@zerohora.com.br