Salim Miguel, 90 anos de um agente cultural
* Por Luciana Rassier
O líbano-biguaçuense Salim Miguel completa 90 anos. O menino que chegou ao Brasil aos três anos de idade tornou-se figura marcante na cultura do país, com a qual tem contribuído de maneira incansável. Salim é um homem de ação, sempre envolvido em projetos que concretiza com primazia. Intelectual inquieto e multifacetado, esse humanista tem utilizado a palavra como instrumento na construção de uma sociedade mais tolerante e solidária, em que a liberdade de imaginar e de nos reinventarmos constantemente possa nos tornar mais conscientes e responsáveis por nossas escolhas.
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Com mais de 30 livros publicados, é um consagrado contista e romancista, mas também um exímio jornalista, que inovou nas fotorreportagens da revista Manchete e marcou época como crítico literário nas páginas do Jornal do Brasil nas décadas de 1970 e 1980. Como gestor cultural, duas atividades merecem destaque no seu percurso.
Ele dirigiu de 1983 a 1991 a editora da Universidade Federal de Santa Catarina (EdUFSC), colocando-a entre as principais do país e contribuindo na elaboração das políticas editoriais nacionais. Alguns anos mais tarde, à frente da Fundação Franklin Cascaes (1993-1996), colaborou na definição da política cultural de Florianópolis.
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O percurso desse intelectual ímpar valeu-lhe distinções como o título de Doutor honoris causa da UFSC em 2002. No mesmo ano, recebeu da União Brasileira de Escritores o Prêmio Juca Pato de intelectual do ano. Em 2009, a Academia Brasileira de Letras o honrou com o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra. Esse reconhecimento se deve em grande parte ao período de quinze anos vividos no Rio de Janeiro, que lhe deu notoriedade nacional e ampliou consideravelmente seu círculo de contatos, no Brasil e no exterior.
Na verdade, foi um “exílio” ao qual Salim Miguel e sua companheira de vida e de combates culturais, a escritora e tradutora Eglê Malheiros, se viram obrigados. A vida para esse casal de intelectuais e ativistas culturais tinha se tornado impossível na pequena Florianópolis após terem ambos sido presos em consequência do golpe militar de 1964.
É inegável que, na época, Salim Miguel tinha mais de 15 anos de intensa ação cultural. É incontestável que ele foi um dos participantes mais ativos do Grupo Sul (1947-1958), que havia revolucionado o panorama cultural de Florianópolis na literatura, no cinema, no teatro e nas artes plásticas.
Salim foi uma das principais figuras da “Polêmica entre os Novos e os Velhos”, que ocupou as páginas da imprensa local no final da década de 1940 , provocando reações passionais e ressentimentos tenazes. Além disso, ele foi um dos proprietários, de 1950 a 1959, da Livraria Anita Garibaldi, onde se encontravam as novidades literárias brasileiras e estrangeiras, livros de artes, livros sobre economia ou política, alguns dos quais – fato raro na época – publicados na União Soviética. Era um ponto de encontro de um público variado, que propiciava a troca de ideias, e por isso mesmo considerado por alguns como um lugar altamente subversivo.
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Mas também é verdade que Salim Miguel não era nem membro do Partido Comunista e nem oponente ao governo. Aliás, na época do golpe militar, ele era chefe do escritório da Agência Nacional de Santa Catarina e membro da equipe do Gabinete de Relações Públicas do Governo Celso Ramos. Além de não impedirem sua prisão, esses vínculos acarretaram situações insólitas, já que durante sua prisão o escritor e jornalista encontrou conhecidos e colegas que, após o golpe, tinham sido encarregados dos interrogatórios.
Salim Miguel esperou vinte e oito anos para retomar as anotações do diário que escreveu durante os 48 dias em que ficou preso. A partir delas, ficcionalizou sua experiência em um belo e premiado romance, Primeiro de Abril, Narrativas da Cadeia, cujos capítulos, que podem ser lidos independentemente, diferem bastante. Os que descrevem os interrogatórios ou a tortura psicológica recriam a tensão e a angústia dessas situações, enquanto que outros capítulos são escritos com humor e ironia.
Publicado em 1994, trinta anos após os eventos que conta, o livro não privilegia apenas as alusões a fatos históricos _ ao contrário de tantos outros textos relativos à ditadura militar no Brasil. O mais marcante é o esforço da memória para reconstituir a atmosfera daqueles dias difíceis. As anotações no diário são um modo de lutar contra a coisificação dos indivíduos, na medida em que essas referem-se em sua maioria às pessoas que ali estão.
Salim Miguel nomeia os prisioneiros, os faz existir, lhes dá a palavra. Essas vozes, até então silenciosas, são ouvidas e dão suas versões dos fatos. Assim, esse texto constitui uma versão complementar, uma alternativa à versão veiculada pelos textos oficiais. Versão que também é alternativa por estar à margem das metrópoles e dos centros de poder do Brasil.
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Trata-se de uma narrativa feita por várias vozes, cujo caráter fragmentar e lacunar e cujo recorte pessoal e forçosamente parcial são constantemente lembrados pelo narrador. E, nisso também, o texto se insurge contra os discursos autoritários que se reivindicam as únicas fontes de uma verdade supostamente única.
Convido o leitor que se interesse pelo assunto a comparar dois textos. O belo e terrível capítulo A Fogueira, no qual Salim Miguel narra a atrocidade da queima dos livros da livraria Anita Garibaldi ocorrida em plena Praça XV, e o artigo publicado em 5 de abril de 1964 no jornal A Gazeta, que conclui que “Assim, mais uma vez, o povo florianopolitano deu provas sobejas de sua fibra de democrata, extinguindo um fogo pernicioso que há vários anos se instalara em pleno coração da cidade, bafejado pela inércia proposital do governo federal, comandado pelo Sr. João Goulart”.
Durante os dois anos trabalhei com Jean-José Mesguen na tradução francesa de Primeiro de Abril, narrativas da cadeia, publicada em 2007 pela editora francesa L’Harmattan. Imaginem minha emoção esta semana, quando cheguei para visitar Salim Miguel e Eglê Malheiros na casa de Cachoeira do Bom Jesus e Antônio Carlos, filho do casal, me disse: “Acho que você vai gostar”. E me passou o diário escrito em 1964, recentemente reencontrado.
Meu presente, em comemoração aos noventa anos desse imenso intelectual, será um estudo desse valioso documento. E o apelo, que faço aqui, para que alguma editora empenhada na conservação do patrimônio imaterial do nosso Brasil reedite o belo Primeiro de Abril, narrativas da cadeia, escrito pelo agente e agitador cultural Salim Miguel.
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* É tradutora e doutora em literatura pela Universidade de Montpellier (França), pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC. Com Jean-José Mesguen, traduziu o romance Primeiro de Abril: Narrativas da Cadeia, de Salim Miguel, publicado em 2007 pela editora parisiense L’Harmattan.