O aumento das áreas desmatadas e o pico de focos de incêndio na Amazônia trouxeram olhares do mundo inteiro para o Brasil. Da parte ambiental às polêmicas diplomáticas e políticas, a floresta está no centro de um debate que é mais próximo da realidade das pessoas do que muitos imaginam.
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A Amazônia tem influência direta e indireta em muito que acontece em nossas vidas, da umidade do ar às condições do solo para plantações agrícolas e o volume de minérios na água onde são cultivadas ostras e mariscos. Tudo passa pelo clima, que é regulado pelos 8,47 milhões de quilômetros quadrados da floresta amazônica (somando a área no Brasil e em mais oito países).
Santa Catarina é frequentemente usada como medida de comparação para as árvores derrubadas na Amazônia brasileira. De 2002 a 2018, a floresta perdeu 200 mil quilômetros quadrados, o que equivale a duas vezes o território catarinense. Somente entre julho de 2018 e julho deste ano, segundo dados do Instituto Imazon, foram detectados 1.287 quilômetros quadrados de desmatamento na região, o que representa quase duas vezes o tamanho da cidade de Florianópolis.
Mas a relação da Amazônia com Santa Catarina vai muito além das comparações de tamanho. Mesmo que em lados diferentes do mapa do Brasil, as duas regiões se conectam por meio de um ciclo que envolve vento, umidade e chuva. E que reflete em assuntos como a ida ao mercado ou escolha se vai sair de casa com um guarda-chuva ou não.
É um mito popular dizer que a Amazônia é o “pulmão do mundo”, pois quase todo o oxigênio produzido pelas árvores também é consumido, mas não é exagero dizer que a “floresta faz chover”.
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— A floresta amazônica é responsável por armazenar água, ela sempre tem umidade. As plantas na floresta amazônica ajudam essa água a ficar armazenada ali, ela entra na planta, entra no lençol freático, guarda umidade. Essa umidade não é perdida, ela cria os tais “rios voadores”. A Amazônia ajuda a ter umidade no Brasil inteiro — explica a geógrafa e professora da Udesc, Edna Lindaura Luiz.
O nosso clima em Santa Catarina é mais úmido por causa dessa umidade que vem de lá", diz a professora Edna Lindaura Luiz.
Os rios voadores (ou rios aéreos) citados pela professora são uma ligação essencial da Amazônia com o Sul do Brasil e Santa Catarina. Trata-se de um efeito climático que traz ventos carregados de umidade e que controlam grande parte das chuvas que ocorrem na região Sul, especialmente no verão e na primavera (entenda o fenômeno no infográfico abaixo).
Para se ter uma ideia, a evaporação da floresta é tão grande que a vazão de água desses rios voadores é semelhante ao rio Amazonas (200 milhões de litros por segundo), segundo dados do Projeto Rios Voadores e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

E o que isso afeta o dia a dia do catarinense? Não fosse a Amazônia, estiagens como a que atinge partes do Estado atualmente — causando falta de água na Grande Florianópolis e perdas em lavouras no Oeste — seriam bem mais comuns. A umidade que vem do mar, por exemplo, não chega a levar chuva ao Oeste do Estado, onde atualmente a plantação do milho está atrasada. E é exatamente o Oeste a região catarinense mais beneficiada pelas chuvas trazidas da Amazônia. Vapor que abastece nuvens no Norte e vai cair em forma de água no Sul.
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— Aqui na região os produtores não fazem irrigação, nem teriam água necessária para isso. Quem arriscou plantar na terra seca já está perdendo e vai ter que replantar, os outros estão com o plantio atrasado. Esse milho daqui a maior parte vai para silos para virar ração, os grãos são vendidos para cooperativas. A estiagem afeta também a pastagem, então esse ciclo inteiro vai impactar no preço do leite, preço da carne, etc — explica o engenheiro agrônomo da Epagri, Álvaro Roberto Poletto.
Efeito é sentido até no mar

Especialista em maricultura, o professor da Univali e doutor em ecologia e recursos naturais, Adriano Weidner Cacciatori Marenzi, vê impactos da chuva trazida da Amazônia para Santa Catarina até na aquicultura catarinense.
Maricultores de Florianópolis como Ailton Luiz Gonzaga, de 70 anos, sabem muito bem que a temperatura da água é um elemento fundamental para o cultivo de ostras e mariscos, e esses pontos também sofrem a influência da umidade.
— Os rios aéreos influenciam mais no interior, mas tendo menos água, você vai ter menor umidade, talvez afetar a temperatura. Em resumo, menos árvores na Amazônia representam menos chuvas aqui na região, menos sedimentos indo para o mar através dos rios, e as águas não vão ficar tão ricas. Esses mangues por exemplo, de São Francisco até Laguna, se não tenho sedimentos eu vou ter empobrecimento dessas áreas. Não tendo esse aporte de sedimentos, não tem nutrientes, não tem plânctons, não tem toda uma cadeia. Tenho uma redução de energia, redução de oferta de nutrientes. Isso afeta o mar — explica o professor Marenzi.
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O especialista destaca que os setores pesqueiro e de aquicultura dependem de um aporte de nutrientes que vem dos rios, o que traz “energia” para o mar e riqueza para os cultivos. Para isso, é necessário chuva abastecendo os rios e trazendo esses nutrientes em direção ao mar.
Toda a natureza está relacionada com esses ciclos fisiológicos. Se algo não está bom, as coisas mudam. Um mundo sem a Amazônia não vai ser como a gente conhece, certamente não vai ter essa natureza, certamente vai ser mais desértico", afirma o professor Marenzi.
Menos chuva = conta de energia mais cara
Além de Santa Catarina e outros Estados da região Sul, os tais rios voadores são responsáveis pela maioria da chuva da região Sudeste, conforme o meteorologista da NSC, Leandro Puchalski. O que isso impacta os catarinenses? Energia.
Muitos reservatórios de água utilizados para a geração de energia elétrica ficam no Sudeste e, quando eles esvaziam, esse déficit impacta o consumidor em tarifas de luz mais caras.
— Em São Paulo a maior parte da chuva é influenciada pelas zonas de convergência, afetadas pelos ventos da Amazônia. Então a floresta tem um impacto enorme no volume de chuva lá — explica Puchalski.
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Solo da Amazônia não é bom para plantio, diz professora
São várias as razões do desmatamento na Amazônia. Desde queimadas acidentais em tempos de estiagem até a derrubada ilegal de árvores para venda de madeira ou limpeza de áreas para plantio agrícola ou até mesmo especulação imobiliária. Para a geógrafa Edna Lindaura Luiz, no entanto, qualquer uso da Amazônia para fins comerciais não é uma boa ideia:
— Não é uma boa ideia usar a Amazônia economicamente transformando em agricultura ou pastagem. O solo é extremamente pobre, sujeito à erosão. Mais vale manter a cobertura florestal que mantém a umidade, mantém os rios, mantém uma biodiversidade, do que você tirar e colocar agricultura ou gado. É uma bobagem. Não é o ambiente propício para isso. Se você quer aumentar a produção agrícola ou de gado, tem que trabalhar propriedade onde já existe, onde já é desmatado, com tecnologias para aumentar a produtividade das áreas.
Em um estudo divulgado na semana passada, o Instituto de Pesquisas Ambiental da Amazônia (Ipam) afirma que o pico de focos de incêndio na Amazônia em 2019 (foram 32.728 entre 1º de janeiro e 14 de agosto) não tem relação com o período de estiagem, e sim com o desmatamento ilegal. Segundo o instituto, apesar da seca há mais umidade na Amazônia atualmente do que nos três últimos anos. O fogo é normalmente usado para limpar o terreno depois do desmatamento na região.
— Não há fogo natural na Amazônia. O que há são pessoas que praticam queimadas, que podem piorar e virar incêndios na temporada de seca — explica a diretora de Ciência do Ipam, Ane Alencar.
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