Depois do cérebro, o corpo humano apresenta mais um sistema equivalente em funcionalidade – o digestivo, desde o esôfago até o intestino. Ele trabalha com um conjunto de diferentes sinais químicos e tipos de interconexões. Se você tivesse de dar um chute, confesse que o último seria o intestino. Para a alemã Giulia Enders, formada em Medicina, é hora de deixar de subestimar a importância daquele que ela considera um de nossos órgãos mais charmosos.
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Escritora alemã faz sucesso com livro sobre intestinos
O interesse de Giulia pelo intestino começou depois que ela contraiu uma doença misteriosa que a deixou coberta de feridas. Após inúmeros tratamentos, ela ficou convencida de que o problema teria relação com o intestino. Então, em 2007, aos 17 anos, mergulhou em pesquisas gastroenterológicas.
Em 2009, a jovem alemã se matriculou na Faculdade de Medicina da Universidade Goethe, de Frankfurt, e, após participar de palestras sobre o assunto em 2012 – que foram gravadas e viraram sucesso em vídeos na internet -, ela foi convidada por uma editora a escrever um livro sobre o assunto.
Uma experiência com camundongos feita em 2011 se tornou uma dais mais elucidativas pesquisas sobre motivação e depressão, conta a alemã no capítulo Cérebro e Intestino de O Discreto Charme do Intestino – Tudo Sobre um Órgão Maravilhoso, livro da escritora de 25 anos que chegou ao Brasil há pouco tempo, depois de se tornar best-seller na Alemanha. Nessa pesquisa, um rato nadador foi colocado em uma pequena bacia com água. Buscou-se descobrir por quanto tempo ele poderia nadar para sair do fundo. Aqueles com traços depressivos se mobilizaram menos e reagiram com mais intensidade ao estresse.
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O que aconteceu, então, quando a equipe do pesquisador irlândes John Cryan decidiu alimentar metade dos camundongos com Lactobacilus rhamnosus JB-1, uma bactéria que cuida do intestino? Estes nadaram por mais tempo e motivação e apresentaram níveis de estresse reduzidos. Mas quando os cientistas cortaram o nervo vago, que liga o sistema gastrointestinal ao cérebro por meio de uma estrutura que passa pelo tórax, a diferença entre os grupos de camundongos deixou de existir. O resultado mostrou que, como escreve Giulia, “esse nervo funciona um pouco como uma linha telefônica, por meio da qual um colaborador externo transmite suas impressões à central, ou seja, à cabeça”.
– O conceito atual é de que existe um eixo cérebrointestino. O intestino pode sofrer influência do cérebro, por exemplo, quando a pessoa tem um estresse. Uma diarreia, por exemplo. Ou quando muda de ambiente e o intestino tranca. O contrário também ocorre. Quando a pessoa tem algum desconforto intestinal, fica preocupada, deprime- se, fica ansiosa. Então, na realidade, é um caminho de duas mãos – reforça Carlos Francesconi, chefe do Serviço de Gastroenterologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, professor titular do Departamento de Medicina Interna da UFRGS e membro do comitê de Relações Internacionais da Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG).
O órgão “espião” no meio do tumulto
Segundo Giulia, como o cérebro se encontra isolado e protegido como nenhum outro órgão, ele precisa dessas informações transmitidas pelo nervo vago para poder fazer uma ideia da situação atual do corpo. Ao adotar no livro uma linguagem que se pretende engraçada e mais acessível ao público leigo – provavelmente o motivo de tamanho sucesso da obra na Alemanha -, a autora explica: “Já o intestino se encontra em meio ao tumulto. Conhece todas as moléculas desde nossa última refeição, aborda com curiosidade os hormônios em circulação no sangue, pergunta às células imunocompetentes como foi seu dia ou, então, ouve concentrado o zumbido das bactérias intestinais. É capaz de contar ao cérebro coisas sobre nós das quais ele jamais suspeitaria”.
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Dois anos após o estudo realizado com camundongos, a primeira pesquisa sobre os efeitos de um intestino bem cuidado em um cérebro humano saudável foi publicada em 2013. Pessoas ingeriram por quatro semanas uma mistura de determinadas bactérias, e algumas áreas do cérebro se alteraram claramente, sobretudo as responsáveis pela elaboração das sensações e de dor. Tais resultados podem ajudar a compreender melhor por que mau humor, bem-estar ou preocupação não se originam isoladamente da cabeça.
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“Em pessoas com intestino irritável, a conexão entre intestino e cérebro pode ser muito carregada. Na síndrome do intestino irritável, com frequência se sente uma pressão ou um gorgolejar desagradável no abdômen, além de uma tendência à diarreia ou a constipações. As pessoas afetadas também costumam sofrer de ansiedade e depressão acima da média”, escreve Giulia.
Distúrbios funcionais
Os distúrbios que podem ocorrer pelo que se estabelece no eixo cérebrointestino, explica o gastroenterologista Carlos Francesconi, são chamados de funcionais. Entre as manifestações mais frequentes dessas alterações está a dispepsia funcional – também popularmente chamada de gastrite -, a diarreia, a constipação e a síndrome do intestino irritável.
No estudo epidemiológico de 2012 SIM Brasil – Saúde Intestinal da Mulher Brasileira, realizado com cerca de 3,5 mil mulheres em 10 cidades do país para dimensionar os impactos da condição intestinal na qualidade de vida das mulheres, mostrou-se que duas a cada três mulheres brasileiras declaram sofrer de algum tipo de desconforto intestinal.
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– A pesquisa dá uma ideia geral de como essas coisas afetam a população. Fizemos um estudo no Hospital de Clínicas e vimos que a dispepsia atinge quase 40% dos brasileiros, a síndrome do intestino irritável, 18%, e a constipação em torno disso também – complementa Francesconi.
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Segundo o especialista, a forma como essas alterações da conexão eixo cérebrointestino afeta a qualidade de vida depende de pessoa para pessoa:
– Há aquelas que são profundamente prejudicadas nesse sentido e outras que convivem muito bem. Tudo tem uma escala de gravidade. Imagine uma pirâmide. A base dela são as pessoas que convivem pacificamente com essas doenças. Tomam seu chazinho, fazem suas manipulações dietéticas e vivem muito bem. No extremo da pirâmide, estão aquelas que não conseguem trabalhar ou sair de casa porque têm as manifestações muito graves. Mas a maioria convive pacificamente com essas doenças.