Ao chegar à rodoviária de Joinville, em 1994, Renato Borges da Silva, 43 anos, trazia toalhas encharcadas de sangue nas mãos e pouca expectativa de vida. Aos 21 anos, recém saído de Contenda, cidadezinha rural no interior do Paraná, ele não fazia ideia de que sofria de uma doença renal crônica.
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Nem ele, nem os médicos que o atendiam no município na época.
– Dos 16 aos 18 anos, tomei Gardenal, porque eu tinha crises epiléticas e achavam que meu problema era mental – recorda ele.
Enquanto passava por diagnósticos inexatos, Renato perdia cada vez mais as funções renais. A viagem para Joinville foi motivada pelo susto de ver a pele ficando amarelada. A falta de informação levou amigos e parentes a acreditarem que ele estava sofrendo de hepatite. Renato chegou à cidade procurando por uma mulher que fazia ¿garrafadas¿ para curar esta doença e acabou descobrindo o motivo real do seu problema de saúde da pior forma: assim que tomou a preparação caseira, desmaiou e foi levado para o Hospital São José.
— Naquele momento, eu já não tinha mais função em nenhum dos dois rins. Eles já haviam ¿murchado¿. Fiquei 25 dias em coma e mais três meses internado no hospital — conta.
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Na época, a esposa dele, Rosane Barbosa da Silva, era apenas uma amiga que o visitava no hospital e ouvia dos médicos que Renato não resistiria à doença. Mesmo assim, ele conseguiu alta, arrumou emprego e passou dois anos fazendo hemodiálise diariamente enquanto buscava doadores compatíveis para poder passar pelo transplante que esperava.
Parceria
Renato foi avisado que o rim recebido após doação de seu irmão teria dez anos de ¿vida útil¿. A cirurgia ocorreu em dezembro de 1996 e, no fim do ano passado, ele celebrou 20 anos da nova chance de viver.
– Eu levo uma vida normal. É claro que cuido da alimentação, mas, além disso, não mudou nada – afirma.
O nefrologista Anderson Gonçalves fez parte da equipe de médicos que participou da retomada dos transplantes renais no Hospital São José, marcada pelo procedimento realizado em Renato. Antes dessa cirurgia, o hospital estava havia cerca de dez anos sem fazer este tipo de operação. O médico conta que houve grande mobilização para que o São José conseguisse as autorizações necessárias.
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Na época, quem precisava de um transplante precisava viajar até Curitiba. O fato de que os transplantes com doador falecido precisam ser feito em poucas horas reduzia as chances de sucesso.O São José é o maior parceiro da Fundação Pró-Rim, entidade filantrópica na área de nefrologia criada em 1987 em Joinville. Recentemente, a entidade realizou o transplante de número 1,5 mil.
A cirurgia ocorreu no Hospital São José. Além do hospital municipal, o Hospital Regional Hans Dieter Schmidt e o Hospital Dona Helena também atuam em conjunto com a instituição. Dos hospitais, são utilizadas as estruturas do centro cirúrgico, mas a maior parte do processo é realizada na sede da Pró-Rim, no bairro Boa Vista.
Cirurgia não traz cura, é tratamento
A coordenadora de transplantes da fundação, Luciane Deboni, explica que o transplante não é uma garantia de cura: ele é considerado um tratamento, da mesma forma que a hemodiálise e a diálise peritonial. Após receber um novo rim, o paciente precisa tomar medicamentos imunossupressores, que diminuem a chance de rejeição do órgão que recebeu.
Ela pode ocorrer em pouco tempo ou levar meses para se manifestar e, da mesma forma, o tempo de vida do novo rim é relativo.
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– Um transplante renal é um processo muito maior do que o procedimento cirúrgico. Antes dele, o paciente passa por uma equipe multidisciplinar em até oito consultas e, depois, passa o resto da vida fazendo o acompanhamento na Pró-Rim – diz.
Luciane afirma que, com a evolução da medicina, tanto a hemodiálise quanto o transplante renal tiveram avanços. Por isso, a média de vida do rim transplantado agora é de 15 anos – há casos conhecidos de pessoas que vivem com o mesmo rim transplantado há 40 anos.Ao todo, a Pró-Rim já transplantou pacientes de 17 Estados brasileiros.
Nesta relação, Santa Catarina é o Estado com maior número de pacientes beneficiados, representando 84,6% dos transplantes realizados pela instituição. Em seguida, os Estados com maior número de transplantes são Paraná, Tocantins, Mato Grosso, Amapá, São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Minas Gerais.
Desses 1,5 mil transplantes, os homens lideram as estatísticas, com 62,5% dos transplantados. A faixa etária que mais predomina entre os receptores de rim é entre 20 e 44 anos. Segundo dados dos últimos cem transplantes da equipe da Fundação Pró-Rim, o tempo de espera em lista destes pacientes foi de pouco mais de cinco meses.
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Demora no diagnóstico está entre as causa do travamento da fila
Atualmente, Joinville é referência em transplantes renais e contribuiu para que Santa Catarina seja o Estado que ocupa o primeiro lugar no ranking de captação e doação de órgãos no Brasil em números absolutos, além de ser o que mais realiza transplantes por população e o segundo com a menor lista de espera por milhão de habitantes.
Hoje, são realizados de 80 a 100 transplantes por ano com o apoio da Pró-Rim. Além disso, a fundação garante os outros tratamentos para os pacientes renais e o pós-operatório. São serviços que, se precisassem ser absorvidos pelos hospitais públicos, fariam com que a fila de espera ficasse muito maior.
– Chegamos a receber de 30 a 40 consultas por dia só do pós- operatório. Se elas precisassem acontecer dentro do hospital, seria muito difícil chegar a este número, além do risco dos pacientes em um ambiente de hospital, expostos a outras doenças – analisa Luciane.
Ela conta que as principais dificuldades para beneficiar ainda mais pacientes são os gargalos no Sistema Único de Saúde (SUS) para conseguir o diagnóstico da doença renal. Ainda que a portaria nº 389, de 13 de março de 2014, defina que os pacientes renais tenham prioridade em consultas e exames na rede de atenção básica de saúde, eles disputam os primeiros lugares da fila com outros grupos de doentes, como câncer e HIV.
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E, ainda que Santa Catarina esteja à frente dos outros Estados em captação de rins de doadores falecidos, ainda há dificuldades para convencer alguns familiares a autorizarem a doação de órgãos.
– Para doadores falecidos, é necessário que seja morte encefálica, o que geralmente é um choque para a família, por ser uma morte súbita: um acidente, um AVC. Os parentes não estão preparados para lidar com isso naquele momento. Por isso, é importante que as pessoas conversem sobre o assunto e avisem seus parentes que desejam ser doadores – diz a médica.
Em Joinville, há 40% de negativas da família, ou seja, a cada dez doadores em potencial, só seis tem autorização da família. Segundo Luciane, em países desenvolvidos, o número chega a 15%.