A notícia recente de que seis pessoas contraíram o vírus do HIV através de transplantes de órgãos no Rio de Janeiro, coloca toda a história do transplante, construída em altruísmo, benevolência e empatia em xeque. E isso não pode acontecer. Por este motivo, é preciso analisar com muito cuidado esta informação, e apurar com muita profundidade os fatos. Afinal de contas, parece clichê, e de fato é: o transplante de órgãos salva vidas, e precisamos continuar com este incentivo.

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De acordo com o Ministério da Saúde, no Brasil, somente no ano de 2024 o número de transplantes realizados até o último dia 11 de outubro, é de 7.131. Um número expressivo de beneficência, compaixão e generosidade das famílias que autorizaram que seu ente querido pudesse fazer o bem a outras, mesmo em um momento de perda e muita dor.

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Este doador pode ser qualquer pessoa, adulto ou criança, com diagnóstico definido de morte cerebral que é irreversível, e é confirmada por critérios definidos pelo Conselho Federal de Medicina

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Mas como pode existir a transmissão do HIV para um transplantado?

Primeiramente é importante esclarecer, que estes seis casos, são os primeiros descritos no Brasil de transmissão do HIV para pacientes receptores de órgãos sólidos. Existem protocolos rígidos para eleger se aquele paciente é um possível candidato à doação de órgãos. Pacientes com diagnóstico de neoplasias, doença infecciosa aguda grave ou doenças infectocontagiosas – como HIV, hepatite B, hepatite C, e doença de Chagas — são proibidos de doar, mesmo com consentimento da família. Isto ocorre pelo risco de transmissão destas patologias para o paciente que vai receber a doação.

Bom, mas qual a explicação para este fato então?

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Para um receptor de órgão transplantado contrair o vírus do HIV através do transplante, devemos considerar duas possibilidades. A primeira um erro laboratorial, fraude em laudos de exames ou técnica da realização de exame inadequada, e estas possibilidades o Ministério da Saúde, Ministério Público, Polícia Civil, Secretaria de Saúde do RJ já estão investigando. Outra possibilidade é a existência da janela imunológica para deteção de HIV, que é o intervalo de tempo entre a infecção pelo HIV até a primeira detecção de anticorpos anti-HIV produzidos pelo nosso sistema imunológico, que pode ser de duas até quatro semanas.

Sem dúvida a segunda opção é mais remota.

No Brasil, o número de pessoas que estão na fila à espera de um órgão é de 44.802. É muita gente. E sabe-se que um único doador pode fornecer dois rins, um fígado, um coração, um pâncreas, dois pulmões, intestino, duas córneas, ossos, medula e pele. É impossível não pensar na angústia da espera destas pessoas por uma renovação de vida. Pensar também nas famílias de quem perdeu um pai, mãe, filho, amigo. É muita luta e luto envolvido.

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Os seis casos de transmissão do vírus do HIV devem ser apurados com total seriedade que a circunstância merece. No entanto, não podemos esquecer que existe um preconceito velado na sociedade nas pessoas que vivem com HIV e que merecem respeito, afinal de contas, ser portador do HIV, hoje, não é sentença de morte. É claro que isso não é uma justificativa e não invalida o erro que aconteceu com estas seis pessoas. Jamais.

O transplante de órgãos continua sendo, para muitas pessoas, a única possibilidade de sobrevivência. Existem protocolos rígidos a serem seguidos tanto para indicação do transplante, quanto para a realização deste. O processo de rastreamento infeccioso para receptores de órgãos é extremamente criterioso no Brasil, abrangendo não só o HIV, mas também hepatites, além de doenças bacterianas e virais. O que aconteceu além de inédito no Brasil, não descredibiliza o processo de transplante de órgãos.

Foi, ao que tudo indica, um retrato do jeitinho brasileiro.

Lamentável.

Por Sabrina Sabino, médica infectologista, formada em Medicina pela PUCRS, mestre em Ciências Médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora de Doenças Infecciosas na Universidade Regional de Blumenau.

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