Em entrevista por telefone, Ruth Rocha lembra sua trajetória e destaca influências que considera negativas na literatura infantil, de autoajuda a Harry Potter.
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A senhora está perto de completar 50 anos de carreira. Quando começou a escrever, imaginava tamanho êxito?
Nunca imaginei. Comecei a escrever com 37 anos. Um pouco antes, passei a fazer artigos sobre educação para a revista Claudia. Lá pelas tantas, Sônia Robato, diretora da revista Recreio, me convidou para ser orientadora pedagógica da publicação. A revista foi um sucesso, vendia 1 milhão por mês. A Sônia começou a insistir para que escrevesse uma história que eu contava para minha filha. Então, escrevi Romeu e Julieta. Ela gostou muito e foi me pedindo outras. Aí, não parei mais.
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Sua formação em Sociologia influenciou o trabalho literário?
Escrevi muito sobre o poder, sobre reis e muito disto vem da formação. E a ditadura deixou a gente “de frente para o crime”. Tem muita coisa na literatura infantil da época que trata de poder. É engraçado que a censura estava em cima da música, do teatro e de mais uma porção de coisas, mas deixou toda a literatura infantil falar mal do poder. Teve uma repressão contra João Carlos Marinho, autor de O Gênio do Crime, que foi detido por falar sobre o esquadrão da morte, e a professora que levou o livro dele para a escola foi expulsa do serviço público. Mas deixaram passar coisas “piores”.
Como abordar a questão política hoje?
A política hoje está muito polarizada, violenta. Ainda não tive uma boa ideia literária para escrever sobre isso. Na verdade, são os Dois Idiotas Sentados Cada qual em Seu Barril (livro da autora). Acabarão explodindo.
A influência do setor público, com a compra das grandes tiragens para escolas, não tolhe a criatividade dos escritores, que podem não querer abordar temas polêmicos?
Não. Quem tem que escrever escreve. Tem essa coisa de compra de governo, de achar que não pode falar disso ou daquilo. Mas, na minha carreira, tudo que bati o pé e disse que queria foi feito. Houve uma patrulha chata do politicamente correto, mas comigo não pegou. Certa vez, implicaram com meu Saci porque ele fuma cachimbo. Aí, falei para a funcionária da editora: “Quem é você para censurar nosso folclore?”. O politicamente correto foi muito prejudicial para a literatura.
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Há outras influências negativas?
Outra coisa muito prejudicial é a autoajuda. Há pouco tempo, fui júri de um concurso literário, e tinha um livro sobre uma mãe que teve câncer, aí os filhos e o marido cuidavam dela, eram bonzinhos, faziam o que ela queria. Tinha outro sobre um menino que teve um AVC, outro sobre um garoto com leucemia… E os livros que não falavam de doença eram chatíssimos, uma coisa meio hippie, umas coisas sobre o futuro da humanidade.
A senhora destaca bons autores infantojuvenis surgindo no mercado?
Não. Na literatura para adultos, vejo muita gente boa. Mas a literatura infantil está muito influenciada por coisas de fora (do país), vampiros, bruxas, mágicos… Acho isso tudo uma bobagem. Não vejo graça alguma.
A senhora acredita que os autores nacionais deveriam valorizar mais nossa tradição ao escrever?
Não é isso. Acho que eles deveriam valorizar literatura estrangeira, e não coisa boba estrangeira. Não sou contra esses livros, os jovens gostam e leem, é bom que leiam qualquer coisa, que façam o exercício da leitura. Acho que, dessas bobagens todas, Harry Potter é a melhorzinha, mas não é literatura.
Por quê?
Isso a gente lê e sabe. Um livro de literatura tem outra consistência. Para começar, bruxa é bobagem, então está pronto: é bobagem (risos). Um menino mágico que vai para uma universidade de magia… Acho um pouco tolo. Não acredito nessas coisas de magia, bruxas, coisas sobrenaturais, vampiros. Não acho nada disso aproveitável. Mas acho que essa moda vai passar, a não ser que esteja se espalhando uma fantástica epidemia de tolice no mundo.
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É uma moda que já tem mais de 15 anos.
Mas, em termos de literatura, é pouco tempo. E, em paralelo, a literatura ainda existe. Há pouco tempo, saiu um livro da Marina Colasanti que ganhou o Jabuti (Breve História de um Pequeno Amor). É um livro muito bonito.
Como escritora, a senhora acompanhou diferentes gerações de leitores. Houve mudanças com o tempo?
Meu livro que mais vende (Marcelo Marmelo Martelo) foi lançado na Recreio em 1969 e publicado em 1976 em livro. Vende em torno de 40 a 50 mil exemplares por ano. Acredito que não houve nenhuma mutação importante na humanidade nos últimos milhares de anos. É claro que as circunstâncias são outras, mas a criança não se modifica muito, tanto que elas aprendem a andar, falar e ler na mesma idade. As pessoas começam a se diferenciar na adolescência. Acho inclusive difícil escrever para esse público atualmente, porque os jovens têm muita liberdade para se diferenciar, separam-se em grupos.
Como despertar o gosto pela leitura nas crianças?
Uma boa alfabetização é um ótimo começo. Se os pais contarem muitas histórias para as crianças, um dia elas entenderão que as grandes histórias estão nos livros. E tem que ouvir muito o que ela fala, para ajudar a formar esse conjunto da fala e da escrita. E também é preciso oferecer acesso a livros. Vejo muitos pais que gastam R$ 1 mil em um celular para o filho, mas são incapazes de entrar em uma livraria e gastar R$ 1 mil em livros.