Rute Gebler é orgulhosa – palavra que aqui não tem a conotação negativa que muitas vezes associamos ao termo. A soprano é orgulhosa, sim; um orgulho positivo de quem marcou seu nome na música lírica catarinense e nacional, não só como cantora, mas também como regente e professora.

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Aos 77 anos, dos quais pode-se dizer que quase todos foram dedicados à música – já que ela mesma narra que canta desde criança, incentivada pela mãe -, Rute conta as histórias sobre sua vida e sua carreira com uma memória e uma alegria notáveis; e mais de uma vez, durante nossa entrevista, cantou trechinhos de músicas, como se só cantando pudesse se expressar plenamente.

A conversa aconteceu na companhia da jornalista Ana Lavratti, que no início de dezembro publicou Rute Ferreira Gebler: Uma Vida em Tom Maior, primeira biografia da artista. Além de complementar aqui e ali as declarações da biografada, com suas próprias percepções e descobertas, feitas durante o processo de pesquisa para a obra, Ana, ao lado de Rute, falou mais sobre a obra em um vídeo que você confere aqui.

Leia abaixo a entrevista completa:

Como e quando você começou a cantar?

Comecei muito cedo, porque minha mãe me incentivava: ela me dizia que gostaria de ter sido, ela mesma, cantora, e me ensinava as músicas. Depois ela me encorajava a participar de concursos em rádios, e lá ia eu cantar – os concursos eram em auditórios, com plateia, transmitidos ao vivo; e minha mãe ficava em casa ouvindo, para ver se eu seria aplaudida ou não. [risos] Ela era apaixonada pelo mundo das óperas, das operetas, e projetou isso em mim. Depois passei a estudar piano, acordeon… Canto mesmo eu comecei a estudar aos 13 anos.

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E quando você se percebeu cantora e decidiu fazer disso uma carreira?

Eu não percebi. As coisas simplesmente aconteceram. Aos 18 anos eu já dava aula de canto. Depois passei a ser regente de corais também, em diversos colégios – mas não porque fui atrás disso, não porque fiz um curso para isso. As circunstâncias foram me levando.

Em 2019 você comemorou cinquenta anos de carreira, e também faz cinquenta anos que você passou a viver em Florianópolis. Como começou sua história na cidade?

Fiquei muito contente de você ter lembrado que neste ano eu completei cinquenta anos como professora. São cinquenta anos desde que eu assinei a carteira como professora no Colégio Coração de Jesus. Meu marido era agrônomo e veio para Florianópolis transferido – eu já tinha uma carreira nessa época, já tinha participado de concursos, ido ao Rio de Janeiro cantar; mas larguei tudo para vir com ele. E eu, grávida, com 26 anos, comecei a procurar alguma coisa para fazer, um trabalho para mim. Logo consegui essa vaga e fui ser professora de canto e música no magistério. Fiquei 17 anos trabalhando lá.

Sabe que essas primeiras alunas até me procuraram neste último ano? Fui em um almoço organizado por elas! E elas ainda sabem cantar as músicas que eu ensinava nas minhas aulas. Isso acontece muito: eu encontro pela cidade antigos alunos meus, e eles ainda lembram das canções que eu ensinei. Isso é um verdadeiro presente para mim.

“Rute Ferreira Gebler: Uma Vida em Tom Maior”, biografia da artista, foi publicada no começo de dezembro (Foto: Tiago Ghizoni)

E paralelamente ao seu trabalho como professora, como mais você atuava na música?

Eu logo passei a ser regente da Associação Coral de Florianópolis, passei dez anos como regente e como solista. Quem fez essa ponte e me sugeriu como regente foi uma aluna, inclusive. [Ana Lavratti lembra que, na época, a Associação Coral era a grande referência musical de Florianópolis: "Sempre que havia um grande evento, uma inauguração de um empreendimento, a visita de um artista ou político, o Coral era convidado a se apresentar", descreve.] Com a Associação eu fiz muitas viagens, turnês; nos apresentamos em diversos lugares. E eu inovei em diversas coisas. O Coral era bastante "estático", digamos assim; cantavam movendo só os lábios. Eu comecei a introduzir movimentos, de braços, de tronco; quase pequenas coreografias. E foi um sucesso.

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Depois eu também passei a dar aulas na Udesc, e fiquei lá por muitos anos, até a minha aposentadoria. Abri também um estúdio em casa, o Estúdio Vozes; e nele dei aulas para muitos cantores.

Um desses cantores foi o Alírio Netto, do Queen Extravaganza, certo?

Isso. Ele começou a trabalhar comigo muito jovem, talvez com 17, 18 anos. Ele sempre teve uma voz espetacular, mas forçava demais – cantava em bandas de rock, sem técnica, sem nada; aí chegava na segunda-feira e não conseguia nem falar. E eu dizia pra ele "Netto, essa sua voz é preciosa, não faz mais isso". Ele começou a trabalhar com mais seriedade, e foi aprendendo a usar e poupar a voz. A primeira vez que ele se apresentou no CIC [no Teatro Ademir Rosa, do Centro Integrado de Cultura, em Florianópolis] foi comigo. Eu dizia para ele: "Netto, teu lugar não é aqui; teu lugar é no mundo." Ele diz que é grato a mim, mas eu acho que ele tem que ser grato a si mesmo, à própria voz, ao próprio esforço, estudo, dedicação. Porque isso é importante: não adianta ter uma boa voz e não se aperfeiçoar. A voz é só o começo.

Nós estamos acostumados a ler muito sobre a Rute cantora, a Rute soprano. Mas, conversando com você, a gente percebe que seu lado professora é muito forte.

Muito mesmo. Eu sempre gostei de ensinar; de crianças pequenas a adultos. Sempre preparei meus alunos para estarem prontos para assumir o papel principal, se for o caso; e aconteceu diversas vezes – algo aconteceu com o cantor principal, e outro teve que assumir em cima da hora, e ele estava pronto para isso. Sempre pode acontecer!

O Vozes da Primavera surgiu justamente porque eu queria espaço para apresentar meus alunos, queria que eles pudessem aparecer. Aliás, eu já tinha essa vontade, e na época houve um incêndio no Hospital de Caridade. Aí os diretores me procuraram para organizar um evento beneficente para ajudar o hospital, e eu juntei as duas ideias. A primeira edição foi no Clube Doze de Agosto, em 1995. O nome foi retirado de um pot-pourri de valsas cantado pelas minhas alunas nesse primeiro espetáculo: uma das valsas era Vozes da Primavera, e o evento aconteceu em novembro. Então ficou.

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O Vozes da Primavera acabou se tornando um dos grandes eventos musicais de Santa Catarina. Por que o projeto acabou?

Foram onze anos consecutivos de Vozes, sempre com shows beneficentes. Eram grandes espetáculos; contratávamos estilistas, figurinistas. O Gesoni Pawlick [referência da alta costura em Santa Catarina; falecido em maio de 2017] desenhava todos os meus figurinos, acredita? Ele me ensinava até a caminhar no palco com aqueles vestidos. [Ana Lavratti chama o Vozes da Primavera de "espetáculo da Broadway", por sua grandeza e pelos temas abordados.] Fizemos peças musicais consagradas – A Noviça Rebelde, por exemplo, que eu já havia feito em Pelotas (RS): da primeira vez eu fui a Noviça; nessa segunda vez fui a Madre Superiora – porque meu tempo de Noviça já tinha passado. [risos]

O último Vozes custou R$ 250 mil. E nós não tínhamos patrocínio, edital, nada disso. Depois de um tempo praticamente já não sobrava dinheiro para doar no final da elaboração dos espetáculos, e isso era um dos objetivos que davam base ao projeto, né? Sem isso não fazia mais sentido. A competição interna também se tornou muito grande: todo mundo queria cantar no Vozes, virou um "sonho de consumo". Todo mundo queria ter um solo, todo mundo queria ter destaque no show.

“Sabe, eu não me considero idosa. Dependendo do dia eu me sinto com uma idade diferente”, diz Rute (Foto: Tiago Ghizoni)

Como foi a experiência de ser tema do samba-enredo da escola Protegidos da Princesa, de Florianópolis, em 2004? Como você se sentiu com a homenagem?

O convite partiu do presidente da escola, o Carlão, o Carlos Henrique Bittencourt. Ele foi à minha casa, e eu logo botei meus arquivos, meu material, à disposição – os pesquisadores vieram vasculhar a minha casa, no bom sentido, é claro, para escrever a história. [risos] Procurei me dedicar de corpo e alma a esse projeto, com muito carinho e muito envolvimento: fui a quase todos os ensaios da bateria, ali na Praça da Alfândega. O Gesoni [Pawlick] fez de novo o meu vestido, que ficou muito bonito. O envolvimento dos meus amigos, dos meus colaboradores, foi muito grande: tivemos uma ala do Rio Grande do Sul que foi composta por amigos meus lá de Pelotas que vieram participar. Muitos passistas e cantores também usaram roupas do Vozes da Primavera que eu ainda tinha guardadas. Minha família também estava presente; minha mãe assistiu do camarote.

Foi uma dedicação única, uma coisa maravilhosa! Desfilei em um carro, mas não na parte mais alta, porque fiquei com medo. [risos] Embora a escola não tenha vencido naquele ano, o grande prêmio, para mim, foi esse envolvimento das pessoas, da sociedade. Foi muito bonito. Eu guardo as melhores lembranças daquele momento.

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Você se aposentou da regência por um problema de audição?

É. Certa vez, enquanto ainda era regente da Associação Coral, eu tive uma gripe muito forte, e parece que passei a sentir meus ouvidos abafados, como se estivessem tampados. Fui ao médico, e depois disso fiz uma série de exames – fiquei uns três meses meio "fora da casinha", por estar sem trabalhar e tomando muitos remédios, para a tontura e tudo mais. Cogitaram até a possibilidade de ser uma coisa mais séria, mas, graças a Deus, não era.

Aí constataram que eu já havia perdido mais de 40% da audição de um ouvido. A coisa é assim: se alguém me chama aqui dentro de casa, eu não sei dizer em qual cômodo a pessoa está. Então, se eu estou regendo um coral, eu não sei quem está cantando o quê. Eu precisava dizer "levante a mão, por favor", para saber de onde estava vindo cada coisa. Aí percebi que, por causa dessa deficiência, eu não poderia mais ser regente. Mas, para cantar, não me atrapalha nada; até porque meu outro ouvido ainda é quase perfeito. Sigo cantando – e como tenho cantado!

Você não tem planos de se aposentar?

Não do canto. Sabe, eu não me considero idosa. Dependendo do dia eu me sinto com uma idade diferente. Tem uns dias em que eu acordo com 90 anos, sim. [risos] Mas na maior parte do tempo eu me sinto uma jovem, até mesmo uma criança. Depende do momento e do que a ocasião exige de mim.

Como é ser cantora de canto lírico no Brasil, e especialmente em Santa Catarina?

Eu sinto que minha história é um pouco atípica: muitas vezes as coisas aconteceram para mim, apareceram na minha frente, de uma forma natural. O maestro da OSPA [Orquestra Sinfônica de Porto Alegre] veio a Florianópolis, me viu como solista e se encantou; e já me convidou para me apresentar com a orquestra. Eu não fui bater na porta da OSPA e pedir para cantar com eles. Cantei em Curitiba com orquestra, cantei no exterior a convite também – convite do Aldo Baldin, que foi o maior tenor que Santa Catarina já teve. Meu marido costumava dizer que lamentava ter "atrapalhado a minha carreira", porque ele sentia que, se não fosse o casamento, eu poderia ter tido uma carreira maior internacionalmente. Mas eu tive minha carreira no Brasil e não precisei abrir mão da minha família. Se estiver cantando, eu estou feliz. Não preciso de palco: posso cantar para uma só pessoa, que seja. O que eu queria foi exatamente o que eu tive.

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