Se a razão está com o tempo, como ensina o adágio popularizado por Marcel Proust e copiado por Fernando Collor de Mello, a festejada escritora norte-americana Jennifer Egan atribuiu crueldade e muito mais a ele. No emaranhado de histórias e personagens arquitetado pela autora em A Visita Cruel do Tempo, ele se revela implacável e irônico sobre a inexorável falência de mais uma geração frente ao sonho americano.
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Livro aclamado em 2011, incluindo o prêmio Pulitzer, A Visita… sai no Brasil no momento em que é preparado para ir às telas dos cinemas.
Essa teia de relacionamentos ambientada nas marchas e contramarchas entre o desbunde da indústria fonográfica dos anos 1980 e a ressaca moral e social dos tempos atuais é tecida a partir das histórias de aproximadamente 70 personagens. Eles se relacionam entre idas e vindas no tempo. São recortes que se encaixam aleatoriamente, aflorando suas personalidades em diferentes níveis de relações que se constroem por estilos narrativos distintos, e nisso a autora se revela exímia. O jornalista do mundo das celebridades envolvido no rumoroso caso de tentativa de estupro de uma jovem estrela de cinema é citado “perifericamente” nos capítulos iniciais para ressurgir adiante como um protagonista. Ao lado da irmã Stephanie, a relações públicas (RP) de um astro de rock à beira da morte, ele resigna-se sobre o infortúnio de sua geração: “Nossas mãos estão sujas.” O cenário é o vazio do marco zero dos atentados às Torres Gêmeas em Nova York, a ferida da América ainda escancarada.
Ninguém está imune ao insucesso, por mais que se maquie sob uma reluzente armadura profissional ou social. Stephanie, a RP, é uma mãe de família que vive a austeridade da vida suburbana, mas ao olhar para o passado vê-se diante de um abismo emocional. Ela é casada com Bennie, um dos personagens notórios deste sampling, que prosperou como um produtor musical quando revelou a banda post-punk Conduit, do astro moribundo, nos anos 1980.
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Ao lado do futuro marido, Stephanie mergulhou numa jornada frenética de sexo, drogas e rock’n roll, vivendo intensamente entre o idealismo pós-hippie e o niilismo punk da época. O jovem Bennie, membro de uma banda, viu sua vida transformada ao conhecer Lou, o milionário figuraço da música, viciado em cocaína e meninas, que o adotaria como discípulo. Bennie é apresentado ao leitor, no primeiro capítulo, por Sasha, a assistente detentora da sua admiração sem precedentes. Ela esconde-se na sua eficiência para não denunciar sua fraqueza maior: é uma cleptomaníaca. Assim como o “realizado” Bennie se consome na sua baixa autoestima e tenta aplacar as suas frustrações ostentando riqueza e frivolidades, como adicionar flocos de ouro no café – típico escapismo do american dream.
Dos palcos de San Francisco aos subúrbios de Nova York, Nápoles e às savanas africanas, o livro vai integrando os personagens e situando o leitor, condicionando-os entre seus momentos de virtudes e decadência (seja emocional, social e financeira). A habilidade narrativa de Egan nos poupa de qualquer climinha e deixa claro quem é o protagonista maior: o tempo. Ele é o fio que tece a história – seja na ficção ou na realidade -, pontuando nossos clímax e cobrando a fatura, para o bem e para o mal. Ninguém está imune, como o “padrinho” Lou, consumido por seus excessos, e o decadente Bosco, o dionisíaco rockstar dos Conduits, desenganado devido a um câncer. Prestes a morrer, Bosco busca a luz da ribalta anunciando uma “turnê suicida” e chama para documentar a despedida Jules Jones, aquele (lembra?) jornalista moralmente desenganado e irmão de Stephanie. A moral dessa história está na fina ironia diluída por Jennifer Egan nos 13 capítulos: o tempo é um cruel gozador.
A Visita Cruel do Tempo, de Jennifer Egan, Editora Intrínseca, 336 págs., R$ 29