O governo do Estado tentou pedir a devolução dos R$ 33 milhões pagos de forma adiantada à empresa Veigamed quando percebeu que poderia não receber os respiradores contra covid-19 no prazo contratado. Os contatos foram feitos antes de a polêmica compra vir à tona em reportagem publicada pelo portal The Intercept Brasil, no fim de abril.
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Os pedidos ocorreram em troca de mensagens entre a servidora Márcia Geremias Pauli, superintendente que respondia pelo setor de compras da Secretaria de Saúde, e o empresário Fábio Guasti, apontado como representante da empresa Veigamed durante todo o processo de aquisição dos respiradores.
Desde o dia 22 de março os dois trocavam informações sobre a compra dos respiradores e também sobre orçamentos de outros produtos que o Estado precisava durante o início da pandemia, como monitores e máscaras. Essas compras acabaram não indo adiante após a servidora considerar “exorbitantes” os preços apresentados pela empresa.
Ainda em 22 de março, Fábio ofereceu ao Estado a compra de respiradores do modelo Shangrila 510S, mas retirou a proposta no dia seguinte alegando que os itens já tinham sido vendidos.
– Se eu conseguir o lote, vocês têm que ter velocidade para a gente fazer o travamento das peças – pressionou Fábio em mensagem de áudio a Márcia.
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Os modelos são exatamente os que acabaram sendo adquiridos depois no mesmo processo de compra, firmado cinco dias depois, em 27 de março. Antes de o Estado fechar esta compra, Fábio chegou a oferecer outro lote de 100 respiradores, novamente pressionando para um pagamento em tempo recorde.
– A fábrica não segura, a gente não tem exclusividade. Vê com ele antes que esse 100 vai embora também – disse em áudio no aplicativo Whatsapp.
Após o Estado confirmar o interesse em comprar os 200 respiradores ofertados em uma nova proposta, Fábio inicialmente enviou documentos de outra empresa para oficializar a venda com o Estado. Somente em 26 de março ele encaminhou dados da empresa Veigamed. Segundo ele, a alteração ocorreu “por causa de representação comercial”, porque a empresa anterior não poderia vender para SC.
Mesmo depois da compra firmada, Fábio continuou pressionando pelo pagamento antecipado por parte do Estado.
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– Estou com dificuldade mesmo, não tô blefando, não. Tenho 500 respiradores para vir junto desse lote. Se complicar isso aí, imagina… (…) Me ajuda, pelo amor de Deus. Vai lá com essa nota fiscal, entrega pra ele (servidor responsável pelo pagamento), faz ele fazer o pagamento lá, a ordem, e me dá essa ordem aqui – disse, novamente em áudio.

Estado passou a cobrar por devolução de dinheiro
Depois que o Estado fez o pagamento dos R$ 33 milhões, em 1º de abril, a situação se inverteu e passou a ser o governo de SC quem pressionou a empresa para tentar recuperar o dinheiro pago antecipadamente. Tudo pelas conversas via Whatspp com a servidora do setor de compras da Secretaria de Saúde.
O primeiro questionamento foi feito no dia 3 de abril, dois dias após o pagamento à empresa. Márcia disse que o secretário de Saúde, Helton Zeferino, estaria questionando ela sobre a cópia da invoice (proposta de compra de um produto no exterior, a ser importado). Fabio tentou tranquilizar a servidora.
– Fala para ele (secretário de Saúde) que a gente está fazendo ainda o pagamento em renminbi (moeda chinesa) para pegar o invoice. O dinheiro entrou pra nós agora duas da tarde. Na China, é duas da manhã. Pode ficar tranquila que assim que a gente fizer, o dinheiro já foi para fazer o pagamento em renminbi, já converteu a moeda, então para aguardar que vai chegar o invoice e o rastreio. A empresa que está importando é a mesma que vende para o Einstein, para o hospital de campanha de São Paulo, para a rede d'Or do Rio de Janeiro. Pode ficar tranquila, tá. Vai chegar os equipamentos – afirmou.
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Segundo documentos obtidos na investigação, no entanto, os primeiros respiradores só foram comprados 15 dias depois, no dia 16 de abril, com a empresa TS Eletronics, de Itajaí, que utilizou ainda outra intermediária para fazer a importação dos equipamentos da China.
Um dia após a mensagem anterior, em 3 de abril, Fábio diz que um representante dele faria contato com Márcia.
Tá te ligando aí uma pessoa aí que… é um parceiro comercial meu que você conhece muito bem, para deixar você tranquila empresário Fábio Guasti em mensagem de áudio enviada para Márcia
Ninguém menciona o nome da pessoa, mas a investigação aponta que nesse período, início de abril, foi quando o advogado Leandro Adriano de Barros teria entrado em contato com a servidora Márcia para tranquilizá-la e afirmar que a empresa iria entregar os respiradores. Leandro, segundo a investigação, também teria sido indicado à servidora pelo ex-secretário da Casa Civil, Douglas Borba.
No dia seguinte, Márcia convida Fábio para uma reunião na sede da Defesa Civil para falar sobre a entrega dos equipamentos. Fábio diz que enviaria um “gerente” – trata-se, segundo a investigação, de Gilliard Gerent, morador de Biguaçu e que também teria relação em redes sociais com o ex-secretário Douglas Borba, conforme a investigação.
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Dois dias após a reunião, em 6 de abril, Márcia sobe o tom e diz que precisa anexar ao processo “alguma comprovação da compra” dos respiradores. Fábio diz que enviaria até a tarde, mas não enviou.
Empresa tentou trocar modelo de respirador
No mesmo dia 6, Fábio ainda tenta trocar o modelo de respirador. Em um áudio, ele agora diz que os respiradores do Estado demorariam “10 a 15 dias” para chegar e oferece outros 200 respiradores, para os quais segundo ele “o cliente não teria pressa”.
– Tem garantia, melhor do que chinês. Eu entrego amanhã para vocês, está aqui em São Paulo no meu galpão. É o mesmo preço, não precisa mexer nem para cima nem pra baixo. (…). É equivalente ao que vocês compraram, mas a marca é muito melhor.
Márcia responde que esse modelo não serviria e que seria dedicado apenas a transporte. E volta a cobrar o envio da invoice comprovando a compra dos respiradores. Fabio novamente promete para o dia seguinte, e não envia.
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No dia 7 de abril, o Estado sobe o tom e passa a cobrar a devolução do dinheiro. Márcia encaminha duas mensagens dizendo que “a estória está muito mal contada” e que, como a empresa não havia feito nenhum contrato de câmbio para compra na China, "não há motivo para não devolver os valores por conta da não entrega imediata dos ventiladores".
Fábio, que no dia 3 havia confirmado o recebimento do dinheiro “duas da tarde”, responde agora que na verdade só estariam “há 24 horas com o dinheiro”, mas que ele já teria sido enviado à China.
– A gente vai fazer a entrega do produto, já gastamos muito dinheiro para voltar atrás – afirmou, em um áudio, seguido de outro:
– Vocês vão aguardar o prazo. Estamos no nosso tempo, o dinheiro caiu segunda-feira. Vamos buscar a máquina para vocês. Avisa o secretário que fizemos um processo de concorrência, mandamos nosso preço e nosso prazo, a partir do ato do pagamento. E o ato do pagamento foi sexta-feira à tarde. Então pede para aguardar que nós vamos trazer os respiradores.
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“Somos do bem, só não gostamos que fiquem fazendo pressão”, disse empresário
No dia 10 de abril, Márcia ainda enviou mensagens pedindo informações sobre a compra ou devolução dos recursos. E lembrou que o cronograma de entrega já estava atrasado – os primeiros respiradores deveriam chegar até dia 7.
– O sr. percebe que a SES aprovou a proposta com valor unitário (…) unicamente pela garantia da entrega do 1º lote (100) entre 05 e 07 de abril? – afirmou a servidora.
Fábio responde dizendo que o Estado teria “perdido o prazo” e que ele estaria “correndo atrás” para entregar o "mais breve possível".
– Nós perdemos tempo, tomamos decisões desamparadas de rito com as garantias de entregas que não ocorreram. Estou comprometendo a assistência – pressionou a servidora.
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Fábio reclamou da pressão que passou a ocorrer pela entrega ou devolução dos recursos.
– Nós somos do bem, só não gosto que fiquem fazendo pressão. Não precisa fazer pressão, já demonstramos que temos capacidade de entregar – disse.
O último contato ocorreu no dia 23 de abril, quando Fábio disse que os respiradores seriam embarcados no dia 29. Os primeiros 50 respiradores, no entanto, só embarcaram no dia 11 de maio e ainda estão retidos pela Receita Federal no aeroporto de Florianópolis por falta da licença de importação. Esses produtos foram alvo de uma apreensão determinada pela Justiça. Os outros 150 ventiladores comprados sequer deixaram a China até o momento.
O que diz a defesa do empresário
Em nota divulgada nesta quarta-feira (27), a defesa do empresário Fábio Guasti afirmou que as conversas com a servidora Márcia demonstram preocupação com a entrega dos respiradores e que a alegada "pressão" para fechar negócio seria para dar garantias a fornecedores e assegurar a compra em um momento de grande concorrência por produtos relacionados à covid-19.
A nota define ainda que as conversas foram republicanas e transparentes, e que demonstrariam que não houve qualquer ilicitude na negociação.
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"Fábio Guasti acredita que tudo será esclarecido e confia que o Poder Judiciário também será firme na separação das verdades e mentiras que são apresentadas nesse caso. O processo de negociação realizado pelas partes foi feito de maneira transparente, com lisura, lícito e que essas são garantias que ele, como intermediário da negociação entre as partes, pode dar", afirma um trecho da nota.
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