Banquete das Ilhadas

O que ter um Jeep tem a ver com não saber nadar em Joinville

– Tá na meia roooda!!! – alguém berrou longe.

Foi como acordar, com um tabefe na cara, de um sonho, feito de coxinha, quibe, cachorro quente, churros de chocolate e de muita fofoca entre um trio de amigas. Desculpe pela redundância, mas chovia muito em Joinville. Se eu já estava pensando em adiantar o tchauzinho quando o céu começou a gotejar dentro da casa da anfitriã, imagine quando descobri que a roda era a minha. Aliás, as quatro já estavam praticamente submersas.

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Bem vi quando entrei pelo portão da garagem aquela lombadinha de concreto, colocada estrategicamente na entrada para carros. Já tinha sido apresentada a esse tipo de estratégia de contensão de água de enchente quando meus avós moravam no Anita Garibaldi. A casa deles ficava a um metro e meio de altura em relação à rua. Nos terrenos um pouco mais baixos, o muro e essa lombada formavam uma trincheira contra a água. Não havia nem sinais de pingos de chuva, mas uma voz do além me apitava o perigo: “aqui enche”.

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Com o grito fazendo eco – roda-oda-oda – tirei as sandálias e atravessei a pé o quintal alagado. Sim, esqueci de dobrar a calça. Molhada, sem saber o que fazer, aceitei ajuda do marido da minha amiga para manobrar o carro. Nessas horas o orgulho estava lavado e a baliza se já se transformava em amnésia. Ele deixou o carro pronto para seguir viagem e ligado, mas eu não fazia ideia de como sair do Iririú. Cheguei até lá pelo GPS.

– Calma amiga, meu marido vem me buscar. Você pode nos seguir até a Beira Rio. Tô ligando pra ele – disse a outra convida para o banquete das ilhadas – O que, amor? Tem água nas ruas do lado? Não dá pra sair?

Afundou o sonho do resgate. Não havia espaço na garagem para mais quatro rodas. Já tinha me conformado em ver meu carro virar submarino. Mas a coragem brotou nas veias da minha amiga anfitriã que falou pro marido:

– Pega a chave e leva ela até a saída do bairro.

Fui atrás dele e tchaf e tchuf e tchof. E água e lama e vruuuum. Dá pisca, dá ré, volta. Aqui não passa. Não tinha nenhuma rota de saída do labirinto. Eu nem pensava mais, só seguia os rastros pela água, sonhando com uma lancha. Na real, estava mesmo é desejando um Jeep, daqueles que sobe coqueiro e anda em correnteza de rio.

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Depois de passar por mais de vinte ruas alagadas e de rezar em muitos idiomas, acho que tínhamos chegado à Tuiuti, cortada pelo Rio Amazonas. Sim, eu sei, o riozão fica lá no Norte. Mas acontece que resolveu passear pelo Sul justo na quinta-feira do reencontro centenário, milenário, com as amigas que não via há infinitos anos. Sim, eu fiquei (mais) dramática depois da enchente.

Parei do lado dele, abaixei o vidro e argumentei:

– Vou ficar por aqui, do lado da viatura da Polícia Militar. Pode voltar tranquilo.

Ele fechou a janela sem dizer nada. E vrrrruuuuuuuuuummmm!!! Atravessou. A-tra-ves-sou. Fiquei procurando a coragem que caiu em algum lugar do meu carro. Juntei a dignidade também e me arrependi por nunca ter respeitado o “tio”, digo, o professor de natação – eu era uma peste que só jogava os pesinhos coloridos no fundo da piscinas para mergulhar e buscar. Se ele foi eu vou. Acabei encontrando a honra e parti.

Comecei bem, na primeira marcha e sem trocar. Vrrrruuu… Uma camionete resolveu passar no sentido contrário. Como se não bastasse cobrir o vidro de lama, causou um repuxo e o “Vrrrruuu”, ganhou um cof, cof, cof. Devo ter rezado direito. Porque foi por um triz, um pé fundo no acelerador e a rotação do motor nas alturas que eu não afundei de vez ali, no encontro do Rio Amazonas com a Tuiuti. Depois de uma hora de muita água e lama no para-brisas, cheguei à avenida Santos Dumont. O marido da amiga voltou. Eu parei no posto, molhei a garganta seca e abasteci.

– Vou ganhar cinco carros igual ao teu no sorteio do final de semana – brincou o frentista.

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Estou torcendo por ele. Espero que leve os cinco para casa e compre um bote ou um Jeep. Porque enquanto a Tuiuti recebia o Amazonas, a Santos Dumont era atravessada pelas correntezas do Rio Negro, com direito a Pororoca no encontro com o Solimões.