A eleição presidencial mais acirrada desde a redemocratização é também a que transformou a discussão política. A religião protagonizou embates entre os candidatos Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Quase não se falou de economia e saúde nos 27 dias de campanha eleitoral do segundo turno, mesmo o Brasil enfrentando uma das maiores inflações desde o plano real e com quase três anos de pandemia. A disputa foi por quem tem mais fé e nos votos daqueles que frequentam a igreja — por isso a campanha tradicional de rua, muitas vezes, foi substituída por templos, cultos e missas, e as fotos nas redes sociais são ao lado de fiéis, pastores e padres.

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Bolsonaro escalou a esposa, Michelle, para intensificar a campanha e conquistar o voto de evangélicos. A primeira-dama veio a uma igreja de Florianópolis, na segunda-feira (24), ao lado da senadora eleita Damares Alves — as duas são conhecidas pelo envolvimento com a igreja evangélica. O evento “Mulher com Bolsonaro” faz parte de um tour pelo Brasil para atrair o voto feminino, público que concentra maior rejeição ao candidato à reeleição. Entre salmos e versículos, Michelle fez um apelo aos eleitores indecisos em frente à igreja lotada:

— Essa caravana é para que vocês possam nos ouvir e multiplicar esses votos quando vocês saírem daqui.

Lula, por sua vez, adotou uma tática já conhecida e que no passado funcionou: lançou uma Carta aos Evangélicos nos mesmos moldes da Carta aos Brasileiros, divulgada na campanha de 2002 para se comprometer com aspectos econômicos. Dessa vez, reforçou o compromisso com a liberdade religiosa, destacou o decreto que instituiu o dia dedicado à Marcha para Jesus e se disse “pessoalmente contra o aborto”.

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“Todos sabem que nunca houve qualquer risco ao funcionamento das Igrejas enquanto fui Presidente. Pelo contrário! Com a prosperidade que ajudamos a construir, foi no nosso Governo que as Igrejas mais cresceram, principalmente as Evangélicas, sem qualquer impedimento e até tiveram condições de enviar missionários para outros países”, escreveu o ex-presidente.

Além disso, no segundo turno, aliou-se a duas evangélicas influentes na igreja e na política: a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) e a ex-ministra Marina Silva (Rede).

Essa aproximação de religião e política, segundo especialistas, passa pela transformação do catolicismo e mudança na lógica da igreja evangélica. A campanha eleitoral foi importante para fixar o tema na agenda brasileira, mas o assunto não será encerrado neste domingo (30), dia do segundo turno das Eleições 2022, já que a religião deve pautar os próximos passos do país.

— Agora, se faz política dentro do templo. Para o evangélico, o projeto de nação é um projeto que passa pela minha fé. O ideal de nação vai continuar sendo pensado dentro do templo — explica o antropólogo Rodrigo Toniol, que é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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A antropóloga Sônia Maluf — professora Universidade Federal de Santa Catarina e especialista em Estado, religiosidades e espiritualidades brasileiras — concorda com a mudança nas religiões e explica como aconteceu a aproximação de fé e política.

— Não é mais a ideia clássica do catolicismo, em que o bem e o mal estão dentro de mim e eu tenho que cultivar o bem — explica. — Nesse novo fundamentalismo, o mal está localizado fora de mim, está no outro, e eu preciso eliminar esse mal, por eu estar do lado do bem — pontua.

Religiões são contra mistura de política e fé

A estratégia dos candidatos à Presidência em focar na religião alcançou também os espaços sagrados e virou assunto de muitos grupos de fiéis. Mas nem para todos a relação fé-política é positiva. Pelo contrário, fiéis relataram ao NSC Total se sentirem, muitas vezes, pressionados a votarem em determinado candidato. Além disso, a maioria das religiões mais seguidas no Brasil e praticadas mundialmente condena essa mistura (veja a posição delas abaixo). Os líderes criticam, principalmente, a possibilidade de manipulação do cidadão a partir da fé e a reprodução das fake news, ou seja, o “sacrilégio da mentira”.

O ato de coagir um fiel vai na contramão da liberdade de consciência, que orienta doutrinas religiosas e pressupõe que cada pessoa deve ser capaz de tomar suas próprias decisões, seja política ou não, segundo líderes católico, muçulmano, espírita e judaico.

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— Isso significa que você não deve conduzir nenhum ser humano a um pensamento que não seja pela livre escolha dele. Quando você exerce a função de uma autoridade religiosa, você tem esse poder. Só que você não pode utilizar para coagir ou impor algo. — opina Ali Zoghbi, vice-presidente da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras).

Para dom Jaime Spengler, vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), não é possível orientar o voto quando há uma sobreposição do poder, principalmente religioso. Tal situação remete ao coronealismo, em que o voto de cabresto era uma forma de reunir votos a favor de um candidato por meio do abuso de poder.

— Seguir os ensinamentos de um terceiro sem crítica e eventual reserva é por demais perigoso, em especial, se este alguém é entendido como uma espécie de porta-voz do sagrado — também compreende Eduardo Gentil, presidente da Associação Israelita Catarinense (AIC).

No entanto, para pastor Ivanei, o ideal é que os líderes evangélicos orientem os devotos para a conscientização a partir do próprio entendimento.

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— Acho que o líder, seja pastor ou padre, é um formador de opinião. Se ele orienta os seus fiéis e a sua comunidade, esse cidadão vai saber fazer uma melhor escolha de candidato ou partido. O líder tem que discutir, tem que falar de política — disse o evangélico.

O sacrilégio das fake news

Outro aspecto que as religiões condenam são as fake news, que também chegaram aos templos, igrejas, mesquitas, sinagogas e terreiros. Isso por que elas vão contra um dos princípios que norteia as doutrinas religiosas: a verdade.

— A ideia de utilizar um instrumento, como as mídias sociais, e adulterar a verdade para atingir objetivos é um sacrilégio para toda e qualquer religião. A mentira é o princípio de todos os males do ser humano e da humanidade. Isso é uma tragédia que se instaurou — expressa o líder mulçumano.

Na visão da liderança umbandista, a transmissão de notícias falsas no ambiente religioso, e fora dele, é antiético e sem senso de moralidade. Quando praticado por devotos, não respeita nem mesmo a própria religião.

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— A mentira, a não-verdade, falseia a realidade e traz um potencial de manipulação de consciência. É uma afronta à democracia e ao Estado Democrático de Direito — afirma dom Jaime.

Limite entre fé e política está para discussão

A aproximação da política e da fé foi escancarada nesta eleição, apesar de ter sido construída nos últimos anos. Como é recente na história democrática brasileira, ainda há limites que precisam ser discutidos, segundo Toniol. O Brasil, por exemplo, não tem leis para analisar se há, em determinados casos, abuso de poder entre líderes religiosos e fiéis quando se fala em política. As próprias religiões divergem ainda sobre essa mistura entre o que é sagrado e mundano.

—  A tendência é de que o legislativo vai ter que encontrar medidas pra conter esse abuso de poder nesse discurso no meio religioso. É preciso ter uma lei — defende Sônia Maluf.

Professor do Departamento de Direito da UFSC, Matheus de Castro diz que o abuso da fé na política não era recorrente nas outras eleições, “se tornou um problema agora’:

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— Então o Direito realmente parece defasado para dar conta desse problema.

De acordo com o Ministério Público Federal em Santa Catarina, existem duas leis que determinam o que é assédio eleitoral:

  • Artigo 301: usar de violência ou grave ameaça para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido, ainda que os fins visados não sejam conseguidos. A pena pode ser de reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias de multa.
  • Artigo 37: propaganda eleitoral em templo (bem de uso comum), pode ser propaganda irregular sujeita à multa

Nesses espaços de “bens de uso comum”, é proibido veicular propaganda de qualquer natureza, seja exposição de placas, faixas, cavaletes, pinturas ou pichações – a propaganda positiva. O mesmo vale para ataques a outros candidatos – a chamada campanha negativa. Fazer algum tipo de propaganda pode gerar multa de R$ 2 mil a R$ 8 mil.

Veja o que cada religião diz sobre política e fé

Catolicismo

De acordo com o bispo católico dom Jaime Spengler, a casa de Deus não é o lugar para buscar votos e não há maneira correta de conquistar eleitores no ambiente religioso. 

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Segundo ele, a Igreja Católica lamenta e critica as situações em quem a fé é explorada por políticos. Ele afirma que sempre criticou candidatos que utilizaram a religião como forma de manipulação e que todos que fazem uso da mentira, como fake news, são indignos de cargos públicos. 

Além disso, dom Jaime reforça que o respeito ao Estado laico e aos dogmas da religião, como respeito ao outro, à verdade e ao discernimento individual, devem prevalecer. 

Cristianismo evangélico

O pastor Ivanei Jesus afirma que a política é importante e que os religiosos devem expressar as próprias opiniões, independente da fé, e guiar os devotos. Entretanto, o líder acredita que deve ter um certo limite para interferir nas escolhas dos fiéis. 

Segundo ele, os pastores devem falar com moderação de forma para conscientizar e respeitar as outras opiniões, visto que cada um tem o direito de tomar a decisão que quiser.

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O evangélico também disse que utilizar de notícias falsas ou de formas de manipulação é uma questão de falta de caráter, mas que infelizmente é algo presente em alguns cultos. 

Espiritismo

A religião, enquanto doutrina ou filosofia espiritualista, não participa de processos políticos pois a relação da fé com campanhas eleitorais não é permitida em casas espiritas, segundo Marta Antunes. 

A avaliação que a federação espírita faz é que o contexto atual, de manipulação da fé e notícias falsas, é uma insensatez que deveria ser coibida pelas lideranças religiosas. 

Ainda argumenta que é necessário que os indivíduos e as instituições, religiosos ou não, cumpram a Constituição Federal e respeitem o Estado laico, de forma que a fé e a política sejam independentes. 

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Islã

De acordo com Ali Zoghbi, a leitura sagrada do Al Corão deixa claro que existem diferenças no plano divino. Por isso, as divergências devem ser respeitadas, assim como a liberdade de consciência.

Com base na doutrina, pronunciamentos políticos de autoridades religiosas não são permitidos dentro das mesquitas para garantir a liberdade de escolha dos fiéis. 

Além disso, o Estado laico é visto como o melhor modelo para esse pensamento essencial dentro do Islã. Ali afirma que a Constituição é clara, e que o Estado brasileiro deve continuar a garantia de liberdade religiosa prevista na legislação. 

Judaísmo

Para Eduardo Gentil, não há problema que os valores da religião guiem os valores humanos. Entretanto, a fé não pode ferir princípios da democracia, da pluralidade e do Estado de Democrático de Direito. 

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Ainda afirmou que a comunidade judaica brasileira atravessou o primeiro turno das eleições de forma positiva, visto que agrega uma coletividade absolutamente plural. 

Ele reforça que é preciso permanente vigilância para que as conquistas obtidas por meio da Constituição Federal sejam sempre respeitadas, como o Estado laico.

Umbanda

A mistura de religião com política, guardadas as devidas proporções, é tão perigosa quanto o álcool e a direção, na visão de Manoel Alves. Para o umbandista, a política é muito importante, mas ela deve estar de um lado e fé de outro.

Os líderes religiosos devem guiados pela ética, moral, decência e sinceridade para agir com seus fiéis. Por isso, não é possível ser líder religiosos e político ao mesmo tempo. 

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Segundo o umbandista, os problemas vistos no contexto atual, de envolvimento da fé com campanhas políticas, não está na religião, está nas pessoas e, principalmente, na cúpula dos religiosos.