Aos pés da cama de Harumi Pinheiro, 11 anos, há um escudo. Ele não é feito de “adamantanium-vibranium” como o do Capitão América dos quadrinhos, mas representa uma força ainda mais poderosa de proteção à menina que desde os seis anos luta contra a leucemia. Harumi o recebeu pouco depois de retornar para o Hospital Infantil de Joinville, em 3 de janeiro, e ouvir a notícia, pela terceira vez, de que havia células acometidas pelo câncer em seu sangue. O escudo é seu companheiro nestes dias em que a rotina é pautada pelas doses de quimioterapia, tratamento que faz com que ela e a mãe, Lilian, tenham que permanecer no setor de oncologia do hospital por um mês.
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Atualmente, 26 moradores de Santa Catarina estão em busca de um doador de medula óssea, uma delas é a Harumi. No Estado, há 178.037 cadastrados, e quase 5 milhões no Brasil. Mesmo assim, realizar o encontro entre um doador compatível e o paciente é uma loteria: as chances de duas pessoas que não tem parentesco terem uma combinação de genes idêntica ou o mais próximo possível do ideal (de até 90%) são de 1 em cada 100 mil pessoas. E, depois que a identificação ocorre, há um longo processo de localização do doador, coleta do material e encaminhamento do paciente para um centro de referência para o transplante.
Em Santa Catarina, por enquanto, ainda são realizados apenas procedimentos que utilizam células-tronco do próprio paciente, que são tratadas com altas doses de radiação ou quimioterapia para que não existam células cancerígenas. Os catarinenses que precisam de transplante com células-tronco de doadores saudáveis precisam ir a Curitiba ou São Paulo para realizarem o transplante.Todos os anos, os Estados devem alcançar uma cota de novos cadastros para renovar o banco de registros de doadores no país. Em Santa Catarina, a meta é de 10.140 cadastros — depois de realizados, o Ministério da Saúde, via Inca, faz o repasse para pagamento dos exames. Mesmo assim, em 2015, o Hemosc recebeu 24.671 dispostas a entrar no banco de dados para doar medula óssea, já que o Governo do Estado assume os custos dos cadastros excedentes.
Em 2016, a cota foi superada mas parou em 10.535 e, no ano passado, não chegou a ser atingida: apenas 7.851 pessoas fizeram os exames para o cadastro. Entre agosto de 2016 e março de 2017, houve um período de interrupção da coleta para doadores não aparentados, já que não havia kits de teste de compatibilidade disponíveis.
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Uma extensão da casa
Fora do hospital, quando está em casa, em Navegantes, Harumi é uma criança agitada e falante, que gosta da velocidade dos skates e bicicletas e dos giros de dança. Ela conseguiu vivenciar estes momentos por algum tempo no ano passado, depois que encerrou o tratamento retomado em 2016, mas as dores, os enjoos e os desmaios sinalizaram que a leucemia linfoide aguda não era um inimigo vencido. Harumi já os conhecia desde 2013, quando as professoras da escola perceberam que o comportamento vivaz da menina havia se transformado repentinamente, o que, lado a lado às manchas arroxeadas pelo corpo, fizeram surgir a suspeita de que havia um problema de saúde.
Nestes cinco anos, os quartos e corredores do Hospital Infantil tornaram-se extensão de casa — ela chegou a passar dois meses internada depois que a imunidade baixa fez com que ela contraísse meningite.Desde que a biópsia revelou que o câncer havia voltado, há uma nova batalha diante de Harumi: encontrar um doador de medula óssea compatível. Os familiares, que geralmente tem mais chances de compatibilidade, já foram testados. Agora, o Hemosc (Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina) está buscando doadores no banco de dados internacional. Enquanto isso, os amigos já começaram a mobilizar os cadastramentos nos hemocentros da região.
— Nós explicamos que não é apenas pela Harumi. Ela pode encontrar o doador entre estes amigos, mas eles também podem ser compatíveis com outra pessoa, daqui ou de outro Estado. O que importa é doar: medula, sangue, plaquetas, tudo isso é necessário para ela e para muitas pessoas que estão doentes — conta a mãe, Lilian Pinheiro.
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O escudo do Capitão América é uma metáfora iniciada depois que Harumi assistiu a uma matéria sobre um voluntário que visitava hospitais em São Paulo vestido como o herói da Marvel. Ela gravou um vídeo pedindo o equipamento de defesa do Capitão América e o paulista até veio a Santa Catarina, mas acabou se desencontrando com a menina. Foi quando outro herói entrou em ação: o voluntário Rodrigo Miceli, de Indaial, que também utiliza a fantasia com um projeto semelhante, a surpreendeu com uma visita em Navegantes e a presenteou com uma indumentária igual e com o escudo, cheio de mensagens inspiradoras para fortalecê-la ainda mais.
Agora, Harumi virou a “Menina América” da cidade. Por enquanto, o escudo a protege, mas, como aliada do super-herói, ela já tem o compromisso de, no futuro, realizar o mesmo trabalho de visitar outras crianças e identificar aquela que herdará o instrumento de defesa.
A importância dos cadastros
A coordenadora do Hemosc, Patrícia Carsten, salienta que a queda também envolve a falta de campanhas e divulgação sobre o tema. Como o cadastro é realizado apenas uma vez, ele não tem a visibilidade que a doação de sangue tem por sua frequência.
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— Geralmente o assunto volta a ser comentado quando as famílias realizam mobilizações por doadores para um paciente. É maior quando envolve crianças e entendemos os pais que o façam, mas é importante que os doadores, ao se cadastrarem, saibam que não estão fazendo por um paciente específico — explica Patrícia.
Ela refere-se ao fato de, em alguns casos, alguns cadastrados serem compatíveis com outros pacientes e, ao serem informados, optarem por não fazer o transplante porque haviam se registrado especificamente para ajudar outra pessoa. Além disso, há casos em que é encontrado um doador e os dados estarem desatualizados no registro, dificultando e, por vezes, impossibilitando um contato que precisa de urgência. Cerca de 30% dos registros são perdidos em função de endereços e telefones inexistentes. Por isso que, apesar do número alto de cadastros no país — o Brasil tem o terceiro maior banco de registros do mundo — é necessário que novos doadores continuem entrando no catálogo.
— O banco de dados precisa ser renovado para substituir aqueles que não se encaixam mais no perfil, seja porque passaram da idade limite (55 anos), porque adquiriram uma doença ou porque a doadora está grávida, além dos casos de falecimento — afirma Patrícia.
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Quando é necessário um transplante:
O transplante de medula óssea é realizado quando o paciente não responde à quimioterapia, que é a primeira linha de tratamento. Ele ocorre, principalmente, em casos de leucemia, anemia aplástica e de Fanconi, linfomas, mieloma múltiplo e neuroblastomas. O oncologista Gilberto Pasqualotto, do Hospital Infantil Dr. Jeser Amarante Faria, explica que ele é necessário, principalmente, quando a doença retorna de uma maneira mais agressiva.
— Quando a doença volta logo depois ou durante o tratamento, o que é chamado de recidiva precoce, o transplante tem maior benefício do que a quimioterapia convencional. Ele faz parte de uma consolidação do tratamento, e o paciente tem que estar com a doença em remissão, ou seja, a doença tem que ter desaparecido para poder fazer o transplante — esclarece.
O transplante de medula óssea consiste na substituição de uma medula óssea doente por células normais, para reconstituição de uma nova medula. O paciente é submetido a um tratamento que destrói a medula e recebe o material sadio como se fosse uma transfusão de sangue. Pasqualotto utiliza uma analogia entre as bactérias e o antibióticos com o câncer e a quimioterapia para explicar a necessidade de um tratamento mais complexo como o transplante.
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— São células inteligentes a ponto de criar resistência quando são agredidas: a bactéria com o antibiótico, as células cancerígenas com a quimioterapia. A partir do momento em que são agredidas, elas vão criando um mecanismo de defesa e a célula (cancerígena) que sobreviveu a um tratamento é mais forte — afirma o especialista.
Como se tornar um doador de medula óssea:
- O voluntário à doação irá assinar um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), e preencher uma ficha com informações pessoais. Será retirada uma pequena quantidade de sangue (10ml) do candidato a doador. É necessário apresentar o documento de identidade.
- O seu sangue será analisado por exame de histocompatibilidade (HLA), um teste de laboratório para identificar suas características genéticas que vão ser cruzadas com os dados de pacientes que necessitam de transplantes para determinar a compatibilidade.n Os seus dados pessoais e o tipo de HLA serão incluídos no Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME).
- Quando houver um paciente com possível compatibilidade, você será consultado para decidir quanto à doação. Por este motivo, é necessário manter os dados sempre atualizados.
- Para seguir com o processo de doação serão necessários outros exames para confirmar a compatibilidade e uma avaliação clínica de saúde.n Somente após todas estas etapas concluídas o doador poderá ser considerado apto e realizar a doação.
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Para se tornar um doador de medula óssea é necessário:
Ter entre 18 e 55 anos de idade.
Estar em bom estado de saúde.
Não ter doença infecciosa ou incapacitante.
Não apresentar doença neoplásica (câncer), hematológica (do sangue) ou do sistema imunológico.
Algumas complicações de saúde não são impeditivas para doação, sendo analisado caso a caso.
Campanha
A NSC Comunicação lançou em 15 de janeiro a segunda edição da campanha “A Paixão Corre Nas Veias”, que reúne os apaixonados pelos clubes catarinenses em uma só torcida durante o Campeonato Catarinense: a da doação de sangue e medula óssea no Estado. A ação é realizada em parceria com o Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina (Hemosc). Na sua primeira edição, a campanha contribuiu para que o Hemosc recebesse 900 bolsas de sangue a mais do que no ano anterior, considerando o período do Campeonato Catarinense.