O primeiro passa com jaqueta grossa, dessas que pode se usar até pra ver a neve em São Joaquim. O segundo traja um moletom grosso, mas bermudas. A senhora vestiu blusa de mangas compridas, mas de tecido leve. A vizinha jovem e bonita sai de alcinhas. Mexo com ela: isso é que é otimismo! Saias, abrigos, botas, havaianas, se encontra de tudo, em termos de vestimenta, pela cidade, neste verão em pleno inverno: é o tempo da cebola, a época de a gente brincar de ser cebola, se montando em camadas.
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Ou de pagar o preço pela escolha errada. Alguns dias nascem com um fog povoado de fantasmas, as pessoas vão aparecendo de repente do meio da névoa, e sorrimos uns pros outros, creio que pensando a mesma coisa: parece um filme de terror… Será que Jack, o estripador, anda por aí?
Mas, como na velha piada de humor negro, vamos por partes. Mané da Ilha diz que “cerração baixa, sol que racha”. (Não é só mané, nem é só em Floripa, mas esta mané aqui faz questão de alimentar o folclore, feito a lenda de Saint Exupéry no Campeche). À medida que a manhã avança, isso de fato se concretiza. O sol vai furando o cerco e vai esquentando, esquentando… Quem tem juízo e noção está vestido com roupa “desfolhável”, e vai se desfolhando e depois se “refolhando” outra vez, acompanhando atemperatura ambiente.
“Já subi três vezes no maleiro, procurando alguma peça de verão que esteja separada. Cansei, pô!”, reclamo. Depois encaro pelo lado positivo, à la Polyana: é um bom exercício, este sobe e desce da escada. Faz bem pras pernas, deve até deixá-las mais bonitas. E como a Ilha fica linda, arre égua! O ar é tão límpido, os contornos são mais nítidos, a temperatura é mais agradável, apesar do “cebolismo” necessário. A cidade dos ocasos raros se exibe ao pôr do sol,num esbanjamento de laranjase vermelhos e róseostons, deslumbrante que só.
Falar assim faz parecer divertido, e de maneira geral, na maior parte do tempo, de fato o é. No entanto, algo parece estar errado, porque esse verão no meio do inverno vira manchete, as pessoas só falam disso, e lá no fundo de nós todos há um sentimento um tanto sombrio, uma expectativa desagradável, como se dias tão bonitos tivessem que ser pagos ali na frente, e custando caro. Creio que fiquei traumatizada com as cheias de 1984, e vejo a chegada de julho sempre com uma certa apreensão, ainda mais em ano de muita seca.
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Quinta passada, voltava da rua saboreando a minha paixão deste ano, um picolé de goiaba, quando uma vizinha de condomínio chega pro grupo que conversa ali na frente e diz, apocalíptica: amanhã vai chover! Me bate um alívio e eu penso em Longfellow, “into each life, some rain must fall“. Faz parte! Assim, é natural quando chove e esfria, e faz inverno no inverno. Faz parte!
Regina Carvalho é escritora